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Opinião

Dentro de um táxi em Lisboa

Por Angela Rocha - Escritora e jornalista.

Adoro voltar a Portugal. Da última vez que estive por lá, voltei com algo diferente na bagagem: Uma história.

Uma história aparentemente comum, de amor. Mas a forma como ela chegou aos meus ouvidos foi inusitada e me encheu de sentimentos tão bons que, por si só, já teria valido a viagem.

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Pegamos um táxi nas cercanias do hotel. Passados alguns minutos, o motorista, um senhor bem afeiçoado, com uma vasta cabeleira grisalha, me olha pelo retrovisor e faz um simples comentário: “Gosto muito do Brasil. Sou casado com uma brasileira”.

O comentário poderia ter passado batido, mas a minha intuição era que ali pairava uma história. E enveredei pelo caminho da entrevista: Como vocês se conheceram?

– Isto é uma longa história, disse. Quase um livro. Envolve uma guerra, um coronel do interior do Brasil e um grande amor, desses de livro.

Então o senhor pode começar, retruquei, avisando sorridente: Não saio desse táxi enquanto não ouvir tudo. Desde o começo. A essa altura, meu marido me cutuca, no banco de trás. Nem dei bola: Já estava sentindo nascer o embrião de uma nova crônica. Ele começou:

– Eu era muito jovem quando fui enviado para a frente de combate na guerra colonial. Fiquei por lá uns dois anos. E ninguém sai impune de uma guerra. Voltei meio maluco.

Como assim meio maluco? – perguntei.

– Perturbado. Bebia muito e criava confusão na rua. Foi quando meus pais resolveram me mandar para o Brasil para a casa de uma tia. Gostei da ideia e fui.

E prosseguiu o relato: “Meu maior sonho era conhecer Foz do Iguaçu. Minha tia morava em São Paulo. Depois de alguns meses com ela, aluguei um carro e me organizei para fazer todo o percurso até Foz".

Segundo ele, a viagem foi maravilhosa. Parava e conhecia cidades belíssimas. Ficava um ou dois dias e seguia seu destino, que eram as cataratas. Até que, um belo dia, ele parou em Palmas de Guaporé. Entrou em uma lanchonete para comprar uma água. O calor era insuportável. Foi quando, de repente, passou por ele, a moça mais linda que ele já tinha visto em toda a sua vida.

Sem exageros. Tenho a certeza de que vi um brilho nos olhos daquele senhor de mais de 60 anos, quando pronunciou o nome da esposa: Ruth. Olhei para o meu marido e vi que ele também já estava emocionado com a história. Tanto que foi dele a pergunta seguinte:

-Mas… E aí?…

– Bom. Uma água gelada se transformou em três meses de hospedagem no hotel da cidade. Fui atrás daquela morena, de pele cor de chocolate ao leite, cabelos lisos de índia, olhos verdes e traços perfeitos. Só que ela era filha do maior fazendeiro da região – tipo um coronel, como vocês chamam por lá. Ele descobriu o nosso namoro e a coisa ficou feia. Um dia, acordei com três homens dentro do meu quarto.

Como escapou? Perguntei.

– Eu era um jovem forte e tinha acabado de chegar de uma guerra. A pancadaria foi feia; mas estavam armados. Fui largado em uma estrada já fora dos limites da cidade com algumas costelas quebradas e a ameaça de ser morto se voltasse. Mas eles não sabiam com quem estavam lidando…

” Eu era doido e estava apaixonado. Nada me faria desistir. Hospedei-me numa cidade vizinha e levei umas semanas para me recuperar dos ferimentos”. E continuou: “A esta altura, nós já tínhamos uma cúmplice: uma amiga dela. Entrei em contato e contei-lhe o que tinha acontecido. Ela avisou à Ruth que tomou as rédeas da situação. Coisa que ela faz até hoje!”, completou sorrindo; e prosseguiu, sem me dar oportunidade para pergunta:

– Ela tinha acabado de completar 18 anos. Procurou o pai. Avisou que ou ele me aceitava e nos ajudava a ficar juntos ou ela iria embora e ele nunca mais a veria.

Nossa! Que história! Que mulher incrível a sua, disse e complementei com uma pergunta, preocupada; e uma solução de momento: já estamos chegando? Se estiver, por favor, encontre um caminho mais longo ou fique dando voltas, quero ouvir todo o resto.

Meu marido volta a me cutucar. Ignoro. E o taxista continuou seu relato, sempre atento às minhas expressões, pelo retrovisor do carro:

– O pai dela manda me buscar de volta; e tenta me enquadrar fazendo a seguinte proposta: nós nos casaríamos e ficaríamos morando na casa dele; e eu trabalhando na fazenda da família. Não prestou. Eu não era coronel, mas tinha um gênio difícil. Queria as coisas do meu jeito. E depois de muitas brigas e discussões, trouxe Ruth para Lisboa, para a casa dos meus pais.

– Aqui em Lisboa, nos estabelecemos. Fui trabalhar com meu pai. Ela teve nossa primeira filha e depois mais uma menina. Hoje temos dois netos. Uma das meninas é advogada e a outra professora. Complemento nossa renda com o táxi.

– Com o tempo, fizemos as pazes com o meu sogro. Lá passamos sempre as férias escolares das crianças, até hoje. Adoro o Brasil.

Como nas melhores histórias de amor, estava chegando o final; e seu protagonista nos preparou para este momento: “O local que vocês vão é logo ali”, mostrou, como que fazendo um suspense.

Quando o carro parou, deu uma última olhada pelo retrovisor e preparou o fecho de ouro, em total sintonia comigo:

– Ruth continua linda até hoje. Meu pai já faleceu, mas minha mãe é louca por ela. Assim como as minhas filhas. E eu. Faria tudo de novo. Voltaria até para a guerra para ter essa mulher. A única da minha vida. Continuo até hoje apaixonado como um garoto.

E foi ao som destas palavras que pagamos e descemos do carro. Parecíamos – ambos – nas nuvens. A história nos deixou leves e felizes. Foi quando perguntei preocupada para o meu marido: Você guardou o nome da cidade em que ele conheceu a mulher dele?

– Não. Meu marido respondeu (chutando um ou dois nomes).

Percebi que tinha perdido este importante detalhe. Teria que revirar as minhas gavetas e encontrar um nome. Mas isto não quebraria o encanto. Todo o resto era real e lindo.

Não deu o livro que ele imaginou. Não por falta de história, mas por falta de tempo para aprofundar tantos detalhes. Mas fica, aqui, esta crônica de uma linda história de amor, ouvida dentro de um táxi, em Lisboa.