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Opinião

Não podemos voltar à vida de antes, que nos levou à catástrofe

É preciso reconhecer, Jacques Attali é uma pessoa fora do comum. Um homem com uma capacidade intelectual e uma carreira profissional que causam assombro. Até seus críticos mais ferozes o reconhecem. Alto funcionário, conselheiro de Estado, professor na prestigiosa Escola Politécnica francesa, fundador e primeiro presidente do Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento - BERD, cofundador da Ação Contra a Fome, hoje dirige o grupo Positive Planet.

Mas, sobretudo, Jacques Attali é conhecido pelo público internacional por ter sido o conselheiro especial do presidente socialista François Mitterrand, entre 1981 e 1991. Hoje, algumas fontes dizem que ele possui uma autêntica simpatia pelo atual chefe de Estado francês, Emmanuel Macron. Embora se costumava dizer o mesmo em relação a seu antecessor, o conservador Nicolas Sarkozy, para quem presidiu, em 2007, uma comissão encarregada de planejar o impulso ao crescimento econômico francês e enfrentar os desafios macroeconômicos atuais.

Attali publicou mais de oitenta livros, entre romances, ensaios, peças de teatro, contos infantis e biografias. Em sua última obra, La economia de la vida: Preparar-se para lo que viene, que a editora Libros del Zorzal acaba de publicar na Argentina, Attali lança um alerta para a evolução incerta da crise sanitária que açoita o planeta, um filme de horror ao qual a humanidade parece ter se resignado, sem se preocupar com suas consequências no futuro.

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“No meio do caminho da atual batalha, faziam-se necessárias uma síntese e uma perspectiva, a fim de tomar consciência do que resta a fazer e nos preparar para o que vem”, afirmou em uma recente entrevista virtual ao jornal La Nación, em Paris.

No entanto, a improvisação e a falta de consciência generalizada – com poucas exceções no planeta – não o surpreendem. Em 2009, durante a epidemia de gripe H1N1, este perspicaz pensador nascido em Argel, em 1943, no seio de uma família de comerciantes judeus, já escrevia sobre a possibilidade de novas pandemias incontroláveis e sobre a necessidade de prever os meios para responder às crises sanitárias globais.

A entrevista é de Luisa Corradini, publicada por La Nación, 08-05-2021. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Você não é uma Cassandra que, há anos, prega no deserto?

E qual é o problema?

Gostaria de saber que efeito essa falta de reação produz em você.

Vai chegando, vai chegando. As pessoas tomam consciência dos perigos do clima. Com a pandemia, tomam consciência da importância da higiene. Esta crise é muito cara em números de vidas, mas acelera a tomada de consciência da importância do que eu chamo de “uma sociedade positiva”. Um conceito fundamental nessa sociedade é o altruísmo, ou seja, ocupar-se do bem-estar de todos, inclusive das gerações futuras. E outro é a economia da vida, que se refere aos setores da economia úteis a essa sociedade positiva.

Na França, seu livro foi publicado em junho de 2020. Há algo que gostaria de mudar? Há alguma região ou país que o surpreendeu, com sua gestão da crise?

O diagnóstico sobre a importância da economia da vida, setor que é necessário desenvolver, continua sendo correto. O que digo sobre o lugar da morte em nossa sociedade ou o risco de proletarização mantém vigência absoluta. Talvez insistiria mais no fato de que agora que temos a vacina a prioridade máxima é, justamente, vacinar todo o planeta. Mas quando falo em transformar a economia também incluo esse ponto.

Em seu livro, você é muito severo a respeito da gestão econômica da crise pelos governos.

Há uma grande mentira geral em todas as partes. Finge-se que tudo vai bem e não se quer ver a realidade. Tanto na vida privada como na pública só é possível avançar aceitando e reconhecendo os próprios erros, intimamente e na frente dos outros. No entanto, não vemos isso em lugar algum. Bolsonaro o admitiu nesses dias, mas a situação em seu país é dramática.

Na Europa, ninguém é capaz de dizer algo assim. Os líderes europeus repetem que fizeram tudo muito bem, que a reação foi a adequada, o que é grotesco. Erraram. Fascinaram-se com o exemplo da China e com o seu confinamento, o mal exemplo a ser seguido.

Hoje, precisamos reconhecer que a Coreia do Sul foi o bom exemplo, com máscaras, testes e rastreamentos, mas sem confinar o conjunto da população, nem parar a economia. Esse país teve pouquíssimas mortes porque impôs imediatamente a estratégia da máscara-testes-isolamento. Não há razão para que a França, que tem 65 milhões de habitantes, tenha tido muitos mais mortos que a Coreia do Sul, que hoje conta com 2.000 mortes.

Hoje, a China pretende ter triunfado e ser a grande potência planetária, mas foi a causa da pandemia. E escondeu a pandemia do mundo. Primeiro a escondeu de si mesma. Durante muito tempo, os chineses no mais alto nível governamental não sabiam o que acontecia devido à censura interna, extremamente forte, e deixaram a pandemia se desenvolver, apesar de que tinham muito mais mortos do que eles próprios reconhecem.

Além da questão da crise, você também não parece acreditar que a China será a grande potência que substitua os Estados Unidos.

Esse argumento é falso, mesmo quando o crescimento chinês é indiscutível. Não acredito na perenidade do regime atual da China, uma nação com uma cultura magnífica, que admiro. A lição de tudo isso é que a democracia é menos ruim que a ditadura. Nas democracias, os que mentem são maus.

Como a pandemia impactará na economia global e o que os países devem fazer a esse respeito?

A prioridade é reorientar a economia aos setores da economia da vida. Antes de tudo, ao setor da saúde, da higiene, a educação, a digitalização, a agricultura, a alimentação saudável.

Antes de passar à economia da vida, você disse que não suporta que as pessoas digam que querem voltar “à vida de antes”. Não é normal que as pessoas pretendam voltar à suposta liberdade que sentiam antes da pandemia?

É que “a vida de antes” era uma vida sem preparação alguma para os riscos, em que se permanece poluindo e criando condições para um desastre climático. Em que não há investimento na economia da vida, ou seja, em pesquisa e inovação. Em que se permanece desenvolvendo uma indústria têxtil delirante, uma indústria petroleira delirante, uma indústria do plástico delirante, uma indústria automobilística delirante. Essa é a vida de antes que nos levou à catástrofe e provocará outras catástrofes.

Podemos desenvolver um pouco mais esse conceito que está no título de seu livro: a economia da vida?

O altruísmo é verdadeiramente o modelo ideológico que me parece importante. É perceber que é do nosso interesse nos ocupar com o outro, que o outro tenha uma máscara, que esteja bem cuidado, que receba sua vacina, que tenha educação. É do nosso interesse que o outro seja feliz. Uma sociedade que não tem futuro é aquela em que as pessoas pensam que a única coisa que importa é o interesse próprio, esquecendo o dos outros. É o que vemos nas redes sociais, esse egoísmo geral. É um grande debate ideológico, decidir entre o altruísmo e o egoísmo.

O segundo conceito dessa sociedade positiva é a necessidade de um altruísmo particular, não para com ossos vizinhos ou nossos contemporâneos, mas para com as gerações futuras. Isto é menos evidente, mas não devemos esquecer que as gerações futuras chegarão em um piscar de olhos. São elas que irão trabalhar, pagar as nossas aposentadorias, criar a sociedade tecnológica do futuro. Todos nós necessitamos delas.

E o terceiro conceito nessa sociedade positiva é que não pode se desenvolver, se a economia não estiver focada nos setores que mencionei mais acima: saúde, educação, segurança, cultura, mundo digital, agricultura, pesquisa, liberdade, meios de comunicação, democracia, energias limpas, água e ar limpos.

São os grandes setores do futuro que devem crescer em detrimento de setores que precisam ser abandonados como as energias fósseis, o plástico, o têxtil (as pessoas não precisam se trocar 14 vezes por dia), a mecânica, o turismo, conforme praticado atualmente, as indústrias aeronáutica e automobilística, que são suicidas em termos de mudança climática.

Mas como chegar a isso, em um mundo dominado pelos gigantes da internet que são, em termos econômicos, mais poderosos que os Estados, e em que os jovens se sentem distantes da política?

É verdade. Mas, ao mesmo tempo, as redes sociais criam as condições para uma aproximação entre as pessoas. Podem ser instrumentos de reunião, de projetos positivos.

De tal modo que, em sua avaliação, os GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft) poderiam desempenhar um papel benéfico nessa sociedade positiva.

O governo chinês tomou consciência do perigo que representavam seus GAFAM próprios e tomou as medidas necessárias para garantir que sejam controlados. O governo dos Estados Unidos deveria alertar que é de seu próprio interesse controlar esses gigantes da tecnologia, e isso, claro, seria do interesse de todos.

Em seu livro, você diz que é a relação com a morte que define uma civilização. Qual é essa relação em nossa civilização ocidental?

De negação. A morte deve ser ignorada, não vista, escondida. Não vemos os mortos, nós os esquecemos. Mas a pandemia nos lembrou dessa realidade, tornou-a visível para nós. Não podemos ocultá-la, porque todos sabemos que há uma grande quantidade de mortos e quase todos perderam alguém próximo. E se deu o caso de que as pessoas morriam sem poder ver seus entes queridos, uma realidade dolorosa que, paradoxalmente, nos coloca em uma espécie de paroxismo da sociedade atual.

Quer dizer?

Se continuarmos neste caminho, podemos imaginar uma situação na qual, a partir do momento em que as pessoas se aproximarem da morte, serão apagadas, não serão mais vistas e não se falará mais delas. Em que até mesmo os ritos funerários desapareçam. Quando se nega a morte, vive-se na abstração. Em consequência, deixa-se de colocar dinheiro na saúde ou nas gerações futuras. A pessoa se transforma em um simples receptor utilizável pelo poder, um instrumento que o permite perdurar.

Agora que Joe Biden substituiu Donald Trump, qual é a sua leitura em relação ao futuro político dos Estados Unidos?

Os Estados Unidos continuam se considerando os donos do mundo. Nesse sentido, os novos dirigentes norte-americanos não são diferentes dos precedentes e continuam falando como se fossem aqueles que decidirão tudo, o que é um absurdo. A sociedade estadunidense se fechará cada vez mais em si mesma, ao passo que o país se orientará para o Pacífico, distanciando-se do Atlântico. Estamos falando de uma sociedade que tem enormes problemas para resolver e por isso recuará sobre si mesma, a fim de criar as condições de sua sobrevivência. Em todo caso, os Estados Unidos continuarão sendo, por muito tempo, uma grande potência.

Por acaso, a Europa está perdendo a grande oportunidade de se transformar em um poder alternativo de equilíbrio? Perdeu a oportunidade que teve, durante os anos Trump, de se organizar de forma independente dos Estados Unidos?

A Europa continua tendo os meios de se transformar em uma grande potência. Para isso, não precisa mentir para si mesma. Não pode, por exemplo, dizer que é a melhor no terreno das vacinas, quando na realidade é muito deficiente.

Mas que outra coisa a União Europeia poderia fazer nesse terreno, levando em consideração que a questão sanitária nunca esteve dentro de suas prioridades? Você acredita que ela agiu mal em optar por uma compra conjunta de vacinas para os 27 países do bloco, por exemplo?

Acredito que a Europa fez muito bem em decidir pela compra comum, porque separadamente os franceses levariam vantagem, os alemães também e os espanhóis teriam sofrido um desastre. Mas isso não suprime o que fez mal. Ignoramos que havia laboratórios, por exemplo, na Alemanha, subvencionados pelo bloco e que fizeram acordos com países estrangeiros e venderam primeiro para eles.

Fomos incapazes de fazer como a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, que disseram “já que nós demos para vocês o dinheiro para a pesquisa, teremos prioridade na distribuição de suas vacinas”. Foi isso que os ingleses fizeram com a AstraZeneca e os norte-americanos com a Pfizer. Mas a vacina Pfizer foi desenvolvida pela BionTech, uma empresa alemã. A verdade é que foram cometidos grandes erros.

Tanto a China como a Rússia aproveitaram a pandemia para praticar a diplomacia da vacina, um ‘soft power’ que permitiu sua presença em todo o mundo em vias de desenvolvimento, e na América em especial. Você acredita que a Europa, por meio do programa Covax ou por conta própria, poderia estar muito mais presente?

É justamente o que estamos buscando fazer, com muitíssimo atraso. Mas reconheçamos que é muito difícil dar vacinas que você mesmo não tem. A verdade é que a Europa nesta crise se comportou muito mal. De qualquer modo, eu não acredito que essa influência chinesa ou russa, por meio de sua diplomacia das vacinas, tenha consequências duradouras em todos esses países.