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Kobra: 'Sucesso não me deslumbra. Acordo cedo, trabalho e quero ser exemplo de que dá para superar'
entrevista.r7.com

Kobra: 'Sucesso não me deslumbra. Acordo cedo, trabalho e quero ser exemplo de que dá para superar'

Maior muralista brasileiro, e um dos mais requisitados do mundo, destaca filme sobre sua trajetória, relembra principais obras e dá detalhes sobre instituto que criou para incluir carentes pela arte

Cultura & Entretenimento

Cobra. Boa parte de quem tem vinte anos ou menos certamente desconhece um significado dessa palavra. Não o literal, do bicho muitas vezes de peçonha, mas da gíria com significado de bom demais em alguma coisa, talentoso, fora da média ou fera, para dar mais uma recaída nostálgica. O paulistano Carlos Eduardo Fernandes Léo, 47 anos, sempre foi cobra. “A galera no colégio me chamava de cobra no desenho”, lembra. De tanta insistência - absolutamente justa, por sinal - Carlos Eduardo virou Eduardo Cobra. Com o tempo, Eduardo Kobra, com K. E, nas assinaturas de suas obras, apenas Kobra, o maior muralista e artista urbano brasileiro e um dos mais requisitados do mundo.

Filho de um tapeceiro e de uma dona de casa do Jardim Martinica, periferia sul de São Paulo, na região do Campo Limpo, Kobra começou a escalar muros, prédios e construções, para estampar seus grafites, aos 12 anos. “Andava com uma turma barra pesada, mas nunca me envolvi com roubo, droga e outros crimes”, conta.

Seis anos depois, saí de casa, ralou uma quantidade para comprar suas tintas, pagar aluguel e até comer. Mas superou tudo e tornou-se um dos maiores muralistas do mundo na atualidade. Criou mais de 50 murais nos Estados Unidos e centenas no Brasil e em outros 34 países, entre eles Japão, Itália, San Marino, Rússia, Índia, Alemanha, Inglaterra e Holanda.

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Nesta conversa com o R7 ENTREVISTA , em rápida passagem pelo Brasil, entre um e outro compromisso nos Estados Unidos, para lançar o ótimo documentário Kobra – Auto Retrato , da cineasta e roteirista Lina Chamie, em cartaz nos cinemas brasileiros, o artista repassou os pontos mais importantes de sua vida e trabalho. Lembrou da intoxicação por metais pesados ​​pela inalação de tintas (o pintor Cândido Portinari morreu por problemas semelhantes em 1962). Enumerou os trabalhos feitos desde a pandemia e deu detalhes sobre o instituto que criou para incentivar pessoas carentes pelo meio da cultura. Arte plural. Acompanha:

Fale de Kobra – Auto Retrato , o filme sobre sua vida e obra.

Eduardo Kobra – É um documentário de 84 minutos, com direção e roteiro da cineasta Lina Chamie, fotografia de Lauro Escorel e produção da Girafa Filmes. Foi selecionado para três festivais: Mostra São Paulo, Festival do Rio e Doc New York City, o maior do gênero documentário dos Estados Unidos. Entrou em cartaz nos cinemas de Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, São Paulo, Campinas, Rio de Janeiro, Niterói, Belo Horizonte, Brasília, Salvador e Recife. Ficará um tempo maior se houver boa resposta do público mas, para mim, estará ótimo do jeito que for. Vou te contar uma coisa simpática: via esse filme em festivais, eventualmente em algum streaming ou canal fechado até, mas em nenhum momento o imaginei em uma sala de cinema sequer ( risos ). Dias atrás, houve uma apresentação dele a céu aberto, em Miami, seguida de uma exposição de parte do meu trabalho.

Como você e a cineasta Lina se encontraram?

Um amigo comum, o jornalista Edson Veiga, brasileiro que mora na Eslovênia, nos apresentou. No início era apenas para a gente se conhecer, tomar um café e ver se havia conexão entre nós que poderia gerar algum fruto. Conversamos bastante, vi e gostei de muita coisa dela, especialmente do filme São Silvestre, rodado durante uma corrida paulistana. Lina é uma artista sensível, peculiar, forte, que trabalha as imagens e filhos de uma maneira maravilhosa. Agradou-me muito também o fato dela ter muitas ligações com São Paulo. Faço trabalhos grandes, em vários pontos do mundo, mas quem convive comigo sabe: sou muito tímido. Falar da minha vida e do meu trabalho não é fácil para mim. Preciso estar à vontade, como agora. Nunca tive a mais remota privacidade com câmeras. Meu negócio é pintar. Pendurar-me em um andaime para pintar um painel é dez vezes mais tranquilo do que dar uma entrevista com uma câmera na minha frente. Tudo o que preciso dizer sobre mim e meu trabalho está nas minhas obras, murais e painéis. Acredito nisso de verdade.

Por que topou fazer o documentário, então?

Por ter me identificado com Lina. Percebi que ela conseguiria tirar de mim coisas importantes, apesar da timidez, e assim foi. Houve tentativas anteriores de fazer filme. Cheguei a gravar cenas, e tal, mas a coisa se dispersou. Lina foi autómato. Mesmo não conseguindo captar recursos para desenvolver o projeto cem por cento como idealizou inicialmente, decidiu levar-lo até o fim. Artista e profissional competente, de mão cheia. Além disso, os filmes sobre histórias de artistas abastecem minha vida desde sempre. Estou sempre procurando por eles. Agonia e Extase , do Michelangelo pintando a Capela Sistina, Sede de Viver, sobre o Van Gogh, os impressionistas... enfim, um monte de coisa fantástica. Então, se procuro isso, nada mais justo do que também minha parte.

Como Lina desenvolveu o documentário?

Ele é estruturado em uma noite de insônia, algo que me persegue há 20 anos. Repasso minha vida da infância difícil, no Jardim Martinica, na região do Campo Limpo, periferia sul de São Paulo, até o reconhecimento mundial como muralista e artista urbano. Falo sobre minha saída de casa aos 18 anos, por questões familiares, divergências com meus pais sobre meu caminho. Eles resistiam à ideia de aceitar minha paixão pela pintura da forma que eu necessitava. E, claro, pela consolidação da minha opção pela arte urbana, como grafiteiro, autor de painéis e muralista, com 50 murais nos Estados Unidos e mais outros tantos no Brasil e em 34 países dos cinco continentes. Japão, Índia, Emirados Árabes, países africanos... Relembro os problemas de saúde que tive, por intoxicação por metais pesados pela inalação de tintas. Abordamos também, claro, as conquistas: a boa recepção dos murais no mundo, os convites para novos trabalhos, meu casamento com a Andressa, minha mulher, e o nascimento de Pedro, meu filho, hoje com seis anos.

Seu nome completo é Carlos Eduardo Fernandes Léo. De onde veio o Kobra?

Da gíria cobra, como sinônimo de ser muito bom em algo. A galera no colégio me chamava de Eduardo cobra no desenho. O Eduardo Cobra pegou e, com o tempo, mudei para Kobra, com K.

Cometi uma ou outra pequena bobagem, mas crime, não. Andava com uma turma barra pesada, mas me limitava a pintar os muros pela madrugada. Não me envolvia com furto, droga, em crime no geral. Comecei no grafite aos 12 anos. O que ouvi de 'vagabundo' não está no gibi. Minha família queria me proteger, mas não entendiam aquele moleque que saía pelas madrugadas desenhando e falando que desejava desenvolver aquilo

Você chegou a entrar no crime?

Não. Cometi uma ou outra pequena bobagem de criança e adolescente, mas crime, não. Andava com uma turma barra pesada, é verdade, mas me limitava a pintar os muros pela madrugada, realizar minha pintura externa. Não me envolvia com furto, droga e outras atitudes criminosas. Comecei no grafite aos 12 anos. Não foi fácil. O que ouvi de 'vagabundo' não está no gibi. Minha família queria me proteger, mas eles não entendiam aquele moleque que saía pelas madrugadas desenhando e falando que desejava desenvolver aquilo. Hoje entendo, mas houve choques. Meu sonho era pintar. Não tinha a menor ideia de que poderia ganhar dinheiro pintando coisas externas, fazendo grafite, mas os trabalhos me completava e não queria, e nem conseguia, deixar de fazer aquilo.

Como era sua relação com seu pai e como o vê hoje?

Ele era uma pessoa simples, estudou até a quinta série fundamental, mas muito honesto, correto. Pagava suas continhas, sua caderneta nas vendas, água, luz, não devia nada a ninguém. Passou-me muitos princípios. Tive essa referência. Houve divergências em relação a caminhos na vida, mas não posso negar a importância dele para mim. Indicou-me o caminho certo, e nunca me desviei dele. Não sou um cara deslumbrado com o reconhecimento ou mesmo o sucesso. Acredito no trabalho, em levantar cedo, entregar-me como sempre. Assim é no Studio Kobra e no instituto. Talvez por isso tenha dado certo e criado condição para os convites de trabalho por todo o mundo. Transformei as dificuldades que tive em mensagens positivas.

Quais foram seus principais trabalhos desde o início da onda de covid?

Recusei ou cancelei mais de 40 convites internacionais durante a pandemia para me dedicar a trabalhos ligados a temas como saúde e sustentabilidade. No último dia 4 de novembro, terminei um mural de 29 metros de comprimento por cinco de altura, 145 metros quadrados, no Walt Disney World Resort, na Disney Springs, na Flórida, Estados Unidos, o primeiro de um artista brasileiro por lá. O trabalho mostra crianças de sete pontos do mundo. O mural The Future is Now! (O Futuro É Agora!), sobre sustentabilidade, inaugurado no final de setembro na fachada do prédio da ONU, em Nova York, tem 336 metros quadrados: 24 metros de comprimento por 14 metros de altura. Antes da inauguração, houve uma exposição de onze telas com murais meus no espaço onde estão as telas Guerra e Paz, doadas por Cândido Portinari à ONU em 1956. Uma honra. Semanas antes, no final de agosto, foi inaugurado o mural Janelas Abertas Para o Mundo no muro em frente à fachada do Museu da Imigração, no bairro da Mooca, zona leste de São Paulo. Tem 736,6 metros quadrados - 5,8 metros de altura por 127 metros de extensão. Mostra oito migrantes e refugiados de diferentes origens, todos personagens reais.

Inauguramos, na Escola Estadual Lasar Segall, na zona Sul de São Paulo, um mural de 84 metros quadrados sobre o inglês Lewis Hamilton, heptacampeão de Fórmula Um, na presença dele, a convite do Instituto Ayrton Senna. No mural, Hamilton segura um capacete de Ayrton Senna, seu ídolo. Ele pediu uma lata de spray e assinou seu nome no mural, para incentivar a molecada

Muita coisa. E tudo muito grande. Haja tempo e trabalho para tudo isso...

Não foi só. Fiz também, no segundo semestre de 2022, um mural de 1,3 mil metros quadrados em Faetano, San Marino, na Europa. Construíram uma passarela para que as pessoas verem de perto a obra, ainda sem nome oficial, na fachada de uma fábrica do grupo SIT. Os líderes de San Marino prometem lançar uma série de selos com cenas do mural. No início de outubro deste ano, pintei outro mural dedicado à saúde, Vitória, de cem metros quadrados, numa clínica de oncologia de Niterói, no Estado do Rio. No final de outubro estive em Londres para uma exposição de um único dia, que atraiu duas mil pessoas. Decidi pintar lá o mural Elizabeth II Forever, sobre a rainha que morreu em 8 de setembro. E agora, em 10 de novembro, inauguramos, na Escola Estadual Lasar Segall, na zona Sul de São Paulo, um mural de 84 metros quadrados sobre o inglês Lewis Hamilton, heptacampeão de Fórmula Um, na presença dele, a convite do Instituto Ayrton Senna. No mural, Hamilton segura um capacete de Ayrton Senna, seu ídolo. Ele pediu uma lata de spray e assinou seu nome no mural, para incentivar a molecada. Gostou de conhecer o Instituto Kobra e se ofereceu para contribuir por meio da venda de uma camisa exclusiva. Criei uma arte para a camiseta, que ficou em oferta online até o final do Grande Prêmio de São Paulo, no dia 13 de novembro. A renda será revertida para o Instituto Kobra.

Por falar no Instituto Kobra, explique como ele funciona.

Criei o instituto em 2021 com ações remotas, online, iniciativas voltadas à formação de crianças e jovens e até ajuda material, alimentos e outras atividades. A missão é apostar na arte como veículo e instrumento de transformação social de crianças, adolescentes, jovens e mesmo adultos. Promovemos ações em áreas carentes, sobretudo periféricas. Levamos grafite, música, teatro e literatura. Funcionamos também como na promoção de causas como defesa do meio ambiente, discurso pacifista, combate ao racismo, respeito entre os povos e luta pela liberdade. Durante a pandemia, por exemplo, pintei o Respirar, um cilindro de oxigênio em desuso, de 1,30 metros, que foi leiloado por R$ 700 mil, dinheiro totalmente aplicado na construção de duas unidades de oxigênio no Amazonas. Agora conseguimos um prédio de mil metros quadrados em Itu, cidade distante 96 quilômetros de São Paulo, que precisaremos reformar. Pelos nosso cálculos, ficará pronto em meados de 2023. Até lá, as ações continuarão remotas.

Boa sorte na nova fase do instituto com sede física?

Vamos precisar de verdade. O instituto foi um dos fatores que me animaram a falar sobre minhas superações, dificuldades familiares, problemas de saúde, enfim, tudo isso no filme. Para mostrar a molecada pobre que há como vencer essas questões. A dificuldade para quem vem da periferia ainda é a mesma. Eu não tinha dinheiro para comprar tinta. Depois, fora de casa, a partir dos 18 anos, por problemas com meus pais, faltou grana para quitar aluguel, comida... Precisava me virar. E tome as decisões certas: afaste-me do crime, da droga, dos caminhos tortuosos. Obrigado.