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Opinião

"Presidiários da ternura" é o que todos deveriam ser. Trecho do livro "O Anjo Bêbado", de Paulo Mendes Campos, para ler, reler e refletir.

Nas magníficas crônicas de Paulo Mendes Campos, há uma expressão perfeita na minha opinião: "presidiários da ternura". É o que todos nós seres humanos deveríamos ser. Em tempos onde as pessoas se preocupam mais em ter e mostrar do que ser e sentir, a capacidade de se emocionar é muito mais do que um sentimento, é uma virtude especial e essencial à espécie humana. Algo que merece ser lembrado todos os dias. Preocupados com coisas irrelevantes e focados em fazer sucesso, ser bem sucedido e resolver nossos próprios problemas do cotidiano, deixamos de prestar atenção a coisas simples, belas, únicas que estão diante dos nossos olhos. Coisas que podem parecer pequenas e sem importância, mas que na verdade são grandiosas. Ficamos muitas vezes indiferentes diante da beleza do mundo, da vida. É preciso praticar mais "exercícios de sensibilidade e de empatia". Infelizmente somos vítimas do sistema e do mundo em que vivemos e nossas prisões são invisíveis e cruéis: a vaidade, o ego, a ganância, o egoísmo, a maldade que há no mundo, as tristezas, mágoas e decepções acumuladas. Mas só depende de nós mesmos nos libertar de tudo isso, que só nos traz dor, sofrimento e nos faz mal. Há de chegar o dia em que todos serão "presidiários da ternura" e isso será um imenso motivo de orgulho. E como fazer isso? Pegando uma criança no colo, fazendo carinho num animal, permanecendo mais do que um minuto por dia abraçando alguém, distribuindo sorrisos, simpatia e alegria por onde passar, dizendo palavras de carinho e esperança a quem precisa, dando um apoio a quem sofre, declarando seu sentimento a quem você ama... Ouvir mais do que falar, acolher, observar, alimentar, ajudar de alguma forma....

Segue abaixo o lindo trecho do livro "O Anjo Bêbado", de Paulo Mendes Campos.

"Quem coleciona selos para o sobrinho; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para contemplar a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas ou de já não aguentar subir uma escada como antigamente; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso amoroso; quem procura numa cidade os traços da cidade que passou, quando o que é velho era frescor e novidade; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupas para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar já quebrando a cerimônia com um início de sentimento: "Meu pai só gostava de sentar-se nessa cadeira"; quem manda livros para os presidiários; quem ajuda a fundar um asilo de órfãos; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem compra na venda verdura fresca para o canário, quem se lembra todos os dias de um amigo morto; quem jamais neglicencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe derem de presente, a caneta e o isqueiro que não mais funcionam; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque para brincar com amigo ou amiga distante; quem coleciona pedras, garrafas e folhas ressequidas; quem passa mais de quinze minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em ligeiro e misterioso transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se envergonha da beleza do pôr-do-sol ou da perfeição de uma concha; quem se desata em riso à visão de uma cascata; quem não se fecha à flor que se abriu de manhã; quem se impressiona com as águas nascentes, com os transatlânticos que passam, com os olhos dos animais ferozes; quem se perturba com o crepúsculo; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga perceber o "pensamento" do boi e do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e, mesmo aparentemente livres como os outros, andarão por toda parte acorrentados, atados aos pequenos amores da grande armadilha terrestre."

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PAULO MENDES CAMPOS

Nascido em 28 de fevereiro de 1922, em Belo Horizonte, Minas Gerais, Paulo Mendes Campos foi um escritor, poeta e jornalista., considerado um dos nomes mais importantes da crônica e literatura brasileiras. Ele morreu aos 69 anos, em 1 de julho de 1991, no Rio de Janeiro.