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De "De Pernas pro Ar" a "Minha mãe é uma Peça 3" - A Década dos Comediantes
O ano se inicia e mais uma vez temos uma comédia brasileira liderando o ranking dos filmes em cartaz. Mais do que isso até: "Minha Mãe É uma Peça 3" obteve abertura assombrosa, fez o último Star Wars comer mais poeira do que a que há em Tatooine, e já é considerado o filme brasileiro de maior renda da história do nosso cinema. Tratar o filme de Paulo Gustavo como patente fenômeno é tentação primária do nosso jornalismo, ninguém tem argumentos para negá-lo, trata-se do óbvio. A questão é que o sucesso de "Minha mãe" não é apenas fenômeno. O nosso jornalismo cultural parece incapaz de enxergar, ou faz mesmo questão de ignorar, que houve processo, aprendizado e indústria por trás dos números alcançados. A pouca atenção dada ao gênero que o público brasileiro mais ama comprova que ainda não compreendemos ou sabemos lidar com o seu sucesso. Como sempre acontece no Brasil, estamos tão focados em apontar nossos erros que esquecemos de aprender com nossos acertos.
Como roteirista e produtor de comédias acompanhei de muito perto e orgulho-me de ter feito parte deste momento. Há dez anos que as comédias nacionais dão as cartas no nosso cinema. Porém, nas análises e balanços sobre o cinema da década passada pouco se comentou sobre o gênero que levou mais de 90 milhões de espectadores às nossas salas na última década, criou franquias originais, revelou astros, entreteve e representou o Brasil nas telas para os próprios brasileiros e não apenas para júris de festivais internacionais. Poucos perceberam que a década que se encerrou quebrou o paradigma da produção das comédias nacionais e que vivenciamos um ciclo.
O sucesso esporádico de longas como "Sexo, amor, e traição", "A Mulher Invisível", "Divã", e de longas da franquia como "Se eu fosse você" na década anterior deixava claro que as comédias tinham espaço cativo no coração do público brasileiro, mas não cresciam além do que podiam, não chegava a ter tanto poder. As produções dos anos 2000 não tinham regularidade, sempre eram aposta, e todas dependiam demais da agenda de astros e estrelas das novelas globais. Os longas não traziam a constância necessária para se estabelecer uma indústria. Aconteciam, mas não se sustentavam, e dependiam demais da televisão. "Grande Família - O Filme" ou mesmo "Os Normais", apesar dos bons números, eram tratados como produtos de uma segunda divisão do nosso audiovisual. Diretores, autores, e atores e atrizes, não se preocupavam tanto com o cinema. O dinheiro e a atenção estavam apenas na TV.
Foi somente a partir de "De Pernas pro Ar", uma idéia original do diretor Roberto Santucci, que tudo mudou. O filme resgatou uma fórmula clássica, simples, e que havia sido esquecida pelos produtores nacionais: a da comédia protagonizada por comediantes. Não é exagero dizer que o formato do primeiro sucesso de Ingrid Guimarães no cinema é o padrão que mantém a indústria até o momento. Hoje, ao vermos os números de Paulo Gustavo, parece óbvio que o cinema brasileiro precisava de comediantes nas telas. Mas há dez anos ninguém atentava para isso. Apesar do cinema norte-americano deitar e rolar por aqui com seus Jim Carreys, Ben Stillers e Adam Sandlers, os filmes protagonizados por comediantes brasileiros eram vistos como algo antigo, apelativo, chanchadesco. Havia um preconceito silencioso entre os produtores e diretores de que comédia com comediantes eram produtos de gosto duvidoso, um tipo de produção que teria se aposentado com Renato Aragão ou que teria sido enterrado com Mazzaroppi. Ninguém se arriscava. O filme quebrou o preconceito de mercado e do público trazendo como protagonista uma comediante de ofício em uma embalagem urbana, moderna, engraçada, familiar. Um produto próprio para o cinema, não apenas mais um derivado da TV.
Mesmo com todos os pontos positivos do projeto, não teve caminho fácil. Apesar do sucesso no teatro, e de ser um rosto conhecido da TV, Ingrid Guimarães era considerada aposta de altíssimo risco, um cartaz impensável na época. Houve resistência da Globofilmes e de distribuidores em aceitá-la. Por um bom tempo, o próprio diretor cogitou Gloria Pires - estrela de "Se eu fosse você" - para a personagem workaholic dona de uma sex shop. Gloria chegou a ser consultada, e talvez até chegasse a um acordo com a produção, mas como rodaria "Lula, o filho do Brasil" no mesmo período, declinou. O nome de Ingrid Guimarães foi trazido por mim e Marcelo Saback às reuniões de criação de "De Pernas pro Ar". Já escrevíamos para ela há anos e também foi defendida por Roberto Farias, um dos produtores executivos. A produtora Mariza Leão resistiu a princípio. Porém, ela mesmo conta que cedeu aos encantos da atriz logo no primeiro encontro – Ingrid é imbatível numa reunião, mais um de seus talentos – e percebeu seu alto potencial de estrelato. A confiança da produtora e a parceria com a estrela fez toda diferença aqui.
O resultado do filme foi surpreendente para todo mundo. "De Pernas pro Ar" estreou em dezembro de 2010 e tornou-se a maior bilheteria nacional do ano fazendo mais de três milhões e meio de espectadores no decorrer de 2011. Uma performance arrasadora para um produto novo, com uma idéia própria, estrelado por uma comediante sem programa na Globo ou oriunda de um derivado do Multishow. Ninguém entendeu nada. Um ex-diretor da Globo Filmes chegou a dizer a amigos próximos que se tratava do "sucesso mais improvável do nosso cinema". Porém, não havia nada de improvável, mas método e observação. Tanto que a fórmula foi imediatamente replicada por mim e Roberto Santucci em outra franquia de sucesso, "Até que a Sorte nos Separe", produzido pela Gullane Filmes. Leandro Hassum, assim como Ingrid, era nome conhecido no teatro e na TV. No cinema, entretanto, era sempre utilizado como rápido alívio cômico, ou o gordinho engraçado no fundo da cena. Foi o espaço dado ao seu talento o que consolidou o sucesso da franquia, a primeira trilogia da comédia nacional, e tornou-o um astro das nossas telas.
Se "De Pernas pro Ar" mostrou o caminho das pedras, "Até que a Sorte nos Separe" de certa forma o pavimentou abrindo as portas para todos os comediantes do país. O que veio em seguida foi quase uma nova corrida do ouro. De uma hora pra outra produtores, diretores e distribuidores começaram a cavar o mercado atrás de novos nomes praticamente esgotando todas as fontes. Arregimentaram gente da TV, do stand-up, da internet, dos shows de humor, de onde viessem. Nem em Serra Pelada se garimpou tanto. Nem tudo foi sucesso, obviamente. Mas o público correspondeu acima do esperado e da melhor forma possível.
De "Cilada.Com" e "E aí, Comeu?", estreladas por Bruno Mazzeo, aos dois "Meu Passado me Condena" com Fabio Porchat; de "O Candidato Honesto", também com Hassum, a "O Suburbano Sortudo" com Rodrigo Santana; de "Tô Ryca", com Samantha Schmutz, aos "Vai que Cola" e "Um tio quase perfeito" com Marcus Majella; apostas ainda mais ousadas e inusitadas como "Como se tornar o pior aluno da Escola" com Danilo Gentilli a "Os Penetras", com Marcelo Adnet e Eduardo Sterblicht; de "Loucas pra Casar", com Ingrid Guimarães e Tatá Werneck, a "Os Homens São de Marte", com Monica Martelli; de "Os Parças", com Whindersson Nunes e Tom Cavalcante, chegando a "Os Farofeiros", com Mauricio Manfrini e Cacau Protásio, entre vários outros, não teve para ninguém. A comédia protagonizada por comediantes deu as cartas com bilheterias poderosas durante toda a década, por várias vezes fez frente à concorrência estrangeira, e trouxe a constância necessária para a indústria.
O maior representante do gênero é, claro, Paulo Gustavo. No início da década o ator fazia participações bissextas na TV e era conhecido do grande público apenas pelo cabeleireiro de voz esganiçada do sucesso "Divã". Suas cenas no longa estrelado por Lilian Cabral eram tão comentadas que praticamente todas foram parar no trailer do filme. Fui um dos vários que comentou com Bruno Wainer à época "se as partes mais engraçadas do filme são dele, por que não fazer um apenas com ele?". Sem nos darmos conta, já estava ali, também, o embrião do que viria a ser a comédia na próxima década.
Apesar da unanimidade de sua participação em "Divã", Paulo ainda iria demorar quatro anos para conseguir levar "Minha mãe é uma peça", seu projeto mais pessoal para frente. Foi Iafa Britz quem viu o potencial do ator e de seu trabalho no teatro com o espetáculo de mesmo nome. Pouco depois do sucesso de "O Divã" a produtora levou o projeto da peça da Dona Hermínia para a Downtown filmes, distribuidora que está por trás de quase todos os filmes nacionais e que comprou a proposta. Porém, como sempre acontece de tempos em tempo, ninguém do mercado acreditou na proposta. A história da dificuldade em levar "Minha mãe é uma peça" para as telas daria uma coluna à parte, mas basta lembrar que a Globo Filmes - ainda presa ao modelo global da década anterior - chegou a sugerir que se desse o papel de Paulo Gustavo à Marieta Severo. Não há como não lembrar da famosa frase do primeiro produtor de "King Kong" que gostou do roteiro, mas pediu pra tirar o macaco. Ainda que com tudo jogando contra, "Minha mãe é uma peça" foi o marco definitivo de que a comédia de comediantes vieram para ficar. Fez número estrondoso logo no primeiro filme alcançando quase cinco milhões de espectadores, quase dez no segundo, e já ultrapassou todas as marcas no terceiro.
A comédia brasileira começa a próxima década mais do que estabelecida, provando que temos criadores que sabem dialogar com o público, que know-how e conhecimento fazem diferença, e que a cultura brasileira é maior do que quer e deseja o nosso jornalismo cultural. Se nada atrapalhar, tem potencial para fazer mais e ir ainda mais longe. Quando algum crítico ou cineasta ressentido reclama que fazemos comédias demais, com comediantes demais, sempre lembro que mesmo com todo sucesso, a comédia infelizmente ainda é a menor parte dentro da produção nacional, e que ela apenas se garantiu em seu canto, que o resto do mercado aprenda com o processo. Como sempre brinco, há espaço pra todo mundo: pra quê tanto drama?