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Cultura & Entretenimento

O Falso Brilhante de "Aves de Rapina"

Há um detalhe curioso no roteiro de "Aves de Rapina", o qual não vi nenhum crítico comentar, mas que deixa bem claras as pretensões e, infelizmente, também as deficiências da roteirista. Trata-se de um filme com uma idéia de "coffre vivant", um cofre vivo, recurso muito comum em comédias antigas e na qual ninguém se arrisca mais. Inclusive a idéia do diamante engolido foi tentada por William Wyler, mas, que eu saiba, nunca conseguiu tirá-la do papel. Quem conta esse episódio é Hellmuth Karasck em seu livro sobre Billy Wilder, "E o resto é loucura".

Wyler tinha em mente a história de um limpador de janelas que torna-se testemunha de um assalto. Acidentalmente ele engolia o diamante roubado e então ele passa, de uma hora pra outra, a ser o centro das atenções. A análise de Wilder sobre a situação cômica é precisa. Segundo ele, o problema da história, o grande dínamo que a impele, é o diamante engolido, pois tudo girará em torno do herói enquanto o diamante estiver dentro do seu corpo. Apesar de ser uma força de um impulso muito forte, ela não rende, esgota-se rapidamente, porque assim que o diamante for expelido, o herói não terá mais nenhum interesse para o público. Por isso investe-se em complicações. E se o herói fosse hemofílico e não pudesse ser operado? Até onde isso levaria a ação? Wilder sugeriu a Wyler que, na metade da história, se descobrisse que o diamante era falso. O que não resolvia muito também, era quase o mesmo da pedra ser botada pra fora.

Preston Sturges, outro grande das comédias da época, deu uma outra sugestão a Wyler: "acontece o assalto, o limpador de janelas salva o diamante engolindo-o, mas na verdade apenas o esconde em sua bochecha. Ao final, depois dos bandidos presos, o limpador tira o diamante da boca e o exibe para os jornalistas. Um repórter pede para mostrar como ele fez para esconder e o limpador coloca o diamante na boca de novo. Repórter agradece e o parabeniza dando um tapinha nas costas. Aí sim o limpador o engole, e diante das câmeras". Bem, a idéia de Sturgess era engraçada, rendia uma cena, mas era uma boa piada apenas, não salvaria uma comédia inteira.

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O fato é que não há uma boa comédia de diamante engolido. A ironia maior é que Wilder dava este mote como exemplo de desafio, de "não desista, faça funcionar". Uma equipe do "Sai de Baixo" certa vez tentou fazer um episódio assim. Alguém lembrou da idéia do Wyler em alguma reunião de criação e achou que pudesse funcionar no programa. O episódio chegou a ser desenvolvido. Ribamar, o personagem de Tom Cavalcante, engolia um diamante, Caco tentava abri-lo com uma faca, mas não funcionou também. A história teve que ganhar uma situação nova depois de pouco mais de um terço de texto. Nem me lembro se foi gravado.

Para mim, tramas com diamante engolido sempre trarão mais problemas do que solução. Se o diamante for pequeno demais, ele não tem valor. Se for grande, ninguém consegue engolir. Então tem que se inventar e explicar, antes de tudo, que se trata de um diamante único e raro, para ser engolível. Em "Aves de Rapina" o diamante tem uma inscrição interna com as contas bancárias de uma ordem mafiosa ou algo assim. Sim, forçadíssimo. Outro problema: achar uma ação natural e plausível que faça alguém engolir um diamante. Se for de forma voluntária, você determina de cara que seu personagem ou é meio estúpido ou irresponsável. No filme da DC a menina engole porque... bem, porque ela quis. Sim, é esse o nível.

Se o diamante for engolido de forma involuntária, até passa. Mas como fazer alguém engolir um diamante sem querer? A idéia mais clássica é aproveitar o famoso teste de autenticidade de um diamante colocando-o em um copo d'agua. Dizem que diamantes de verdade afundam e os falsos boiam, sei lá se é fato. Alguém toma a água do copo e engole a pedra, mas... se há dúvidas do valor do diamante, é porque ele não vale tanto a pena assim, e isso retira a pressão da história. Enfim, o "diamante engolido" tornou-se um daqueles graais de roteiristas novatos, que querem fazer a idéia funcionar a todo custo para demonstrar que dominam o ofício, um desafio, mas apenas revela seu amadorismo. Há muito se sabe que não funciona direito, que não passa de um fraquíssimo mcguffin.

Pessoalmente acho que é uma grande pegadinha, uma grande sacanagem para a posteridade, deixada por Billy Wilder. O "diamante engolido" não rende, e não renderá nunca, por um único motivo só: a idéia é uma merda. Não à toa está na trama principal de "Aves de Rapina". Porém, dado o ânimo da crítica, deve ter sido outro exercício de linguagem. Afinal, assim como o diamante, o filme também é difícil de engolir.