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Como 'sopa ostentação' de barbatana de tubarão impulsiona pesca ilegal no Brasil - BBC News Brasil
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Como 'sopa ostentação' de barbatana de tubarão impulsiona pesca ilegal no Brasil - BBC News Brasil

Inicialmente destinada aos imperadores chineses, a sopa de barbatana virou, ao longo de séculos, símbolo de riqueza, status social e prestígio na cultura do país e de outras nações asiáticas.

Curiosidades

Entre os anos 960 a 1279, o território que hoje se conhece como China foi comandado pela Dinastia Song.

O período é conhecido por especialistas como um dos mais importantes da China imperial, com profusão nas artes e organização das forças militares.

Mas um dos legados atribuídos à Dinastia Song, que chegou ao fim há mais de 700 anos, parece estar afetando o Brasil atualmente.

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Foi durante essa dinastia, segundo estudiosos, que a sopa de barbatana de tubarão se popularizou como um prato que simboliza riqueza, prestígio e sofisticação. E o apreço por essa iguaria ainda hoje colocou o Brasil na rota do comércio internacional de barbatanas de tubarão.

Em junho, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) fez uma apreensão de 28,7 mil toneladas de barbatanas de tubarão. Segundo o órgão, esta foi a maior apreensão do tipo já registrada no mundo.

O Ibama disse, em nota, que as barbatanas seriam exportadas, ilegalmente, para a Ásia.

A estimativa do Ibama é de que, para produzir essa quantidade de barbatanas, foi preciso matar pelo menos 10 mil tubarões. Desse total, 4,4 mil seriam tubarões-azuis e 5,6 mil da espécie anequim, também conhecido como mako. Este último entrou na lista nacional de animais ameaçados de extinção em abril deste ano.

A apreensão acendeu de vez o alerta sobre uma questão que vem intrigando pesquisadores, órgãos de fiscalização e ambientalistas: afinal, qual é papel do Brasil na cadeia que faz com que barbatanas de tubarão obtidas no país vão parar nas cobiçadas sopas do mercado chinês?

Um levantamento feito pela BBC News Brasil com base em dados do ComexStat, sistema do governo brasileiro sobre exportação e importação, aponta que entre 2003 e 2020, o Brasil exportou 1.228 toneladas de barbatanas de tubarão.

Desse total, 82% foi para Hong Kong (uma região especial administrativa da China) e 11% para a China continental.

A quantidade exportada legalmente pelo Brasil é pequena se comparada ao total de barbatanas de tubarão que chegou aos três principais mercados asiáticos (Hong Kong, Taiwan e Singapura) no mesmo período, de acordo com um estudo do Fundo Internacional pelo Bem-Estar Animal (IFAW na sigla em inglês) divulgado em 2022.

Segundo o documento, entre 2003 e 2020, esses três mercados importaram 188 mil toneladas de barbatana de tubarão.

A Espanha é o principal fornecedor do produto, apontou o estudo, com 51 mil toneladas exportadas.

Apesar disso, a apreensão de barbatanas de tubarão no Brasil realizada em junho deste ano chamou atenção, segundo especialistas, por dois motivos principais.

O primeiro foi o seu volume. As 28,7 toneladas são quase o dobro do que o Brasil exportou oficialmente em 2022, quando o país enviou 17 toneladas, 16,5 das quais (96%) para Hong Kong.

O segundo motivo são os indícios levantados pelo Ibama de que empresários da pesca brasileira estariam contrariando a legislação e focando sua atuação em espécies cuja pesca em escala industrial é proibida.

Sopa 'ostentação'

Inicialmente destinada aos imperadores chineses, a sopa de barbatana virou, ao longo de séculos, símbolo de riqueza, status social e prestígio na cultura do país e de outros países asiáticos, como Singapura e Taiwan.

Quando preparada, a barbatana se desmancha na água, deixando suas fibras moles, como se fosse uma espécie de macarrão fino.

Estudiosos dizem que a sopa, que tem valor nutricional baixo, continuou a ser vista como um símbolo de opulência na China até o início da Revolução Comunista no país, em 1949. A partir de então, o apreço pela iguaria passou a ser publicamente mal-visto em uma sociedade que vivia uma crise política, econômica e onde a maioria da população vivia na pobreza.

Com o rápido crescimento da economia chinesa nas décadas seguintes, a sopa voltou a ser apreciada de forma aberta e desejada pelas classes média e alta do país.

Conforme o apetite chinês pela sopa foi crescendo, a reação da comunidade internacional ao comércio de barbatanas também aumentou. A pressão foi tanta que, em 2012, o governo chinês anunciou que não serviria mais esse tipo de sopa nos banquetes oficiais.

A presidente da Sea Shepherd Brasil, Nathalie Gil, explica que o valor da sopa se dá pelo status social que esse prato confere na cultura chinesa. A Sea Shepherd é uma organização não-governamental que combate crimes ambientais nos oceanos.

"As populações da China e de outros países asiáticos começaram a querer ter esse status que, antes, era disponível para poucas pessoas. E com isso, começamos a ver o consumo dessa sopa se espalhar", disse.

Nathalie Gil diz que o preço do quilo da barbatana de tubarão no mercado internacional pode chegar a US$ 15 mil (cerca de R$ 70 mil).

Atualmente, é comum encontrar a sopa em restaurantes refinados das principais cidades chinesas com preços que podem chegar a US$ 100 dólares, o equivalente a aproximadamente R$ 475.

Também é comum que a sopa seja servida em recepções como casamentos, festas de aniversário e durante as celebrações do Ano Novo chinês.

O que diz a legislação?

Dados da Fundação da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) estima que, por ano, o comércio global de barbatanas de tubarão movimente entre US$ 400 milhões e US$ 500 milhões. Esse mercado é alvo de críticas internacionais por conta da pressão que exerce sobre os estoques pesqueiros de tubarão ao redor do mundo.

Um estudo publicado pela revista científica Nature em 2021 apontou que, desde 1970, as populações de tubarões e raias caíram 71% em todo o mundo em função de um aumento de 18 vezes na pressão pesqueira sobre essas espécies.

Em geral, há duas formas de obter as barbatanas de tubarão.

A primeira é por meio da pesca convencional do tubarão. O animal é capturado e abatido, sua carne é processada, e as barbatanas e nadadeiras são destinadas a mercados como o asiático.

A segunda é chamada de finning, que consiste em capturar o tubarão, cortar suas barbatanas e nadadeiras e jogar o resto do corpo do animal no mar. O termo finning é derivado da palavra fin, que em inglês significa barbatana.

Essa prática é condenada internacionalmente e proibida em diversos países, inclusive no Brasil.

"Infelizmente, o animal é jogado moribundo no mar, agonizando e morre lentamente", diz Gil.

Apesar de o finning ser proibido no Brasil, a pesca de tubarões é permitida no país, mas sob uma série de restrições.

Atualmente, apenas animais capturados como produto de pesca incidental podem ser vendidos no país.

Isso acontece quando um barco autorizado a pescar atum, por exemplo, acaba capturando um tubarão.

Se esse animal não for uma espécie ameaçada de extinção, ele pode ser levado ao porto, processado e comercializado normalmente.

Se estiver ameaçado, tem de ser solto ou descartado (se estiver morto) e registrado junto às autoridades responsáveis.

Brecha no sistema

Agentes do Ibama, no entanto, afirmam que empresas de pesca industrial estariam burlando o sistema de controle e que isso teria sido um dos principais motivos para a apreensão de barbatanas realizada em junho deste ano.

A operação se concentrou em Itajaí, no litoral de Santa Catarina, e em Guarulhos, em São Paulo, onde uma carga de quase uma tonelada foi encontrada prestes a ser embarcada para o exterior.

"A gente encontrou uma grande quantidade de irregularidades cometidas em toda cadeia", diz o agente do Ibama Leandro Aranha, um dos responsáveis pela operação, "que vão desde o direcionamento de pesca do tubarão, sendo que ele só poderia ser capturado de forma incidental e inevitável, ao não uso de medidas mitigadoras para evitar que aves marinhas fossem afetadas pela pesca."

Aranha explica que o direcionamento da pesca ocorre quando, em vez de capturar a espécie-alvo da sua licença, o pescador busca capturar outro tipo de animal.

Um relatório do Ibama sobre a operação mostra como os barcos autuados pelo órgão teriam tentado burlar a fiscalização.

Os agentes compararam os dados de satélite do sistema do Programa Nacional de Rastreamento de Embarcações Pesqueiras por Satélite (PREPS), que monitora os barcos autorizados a pescar, com as informações dos diários de bordo das embarcações.

De acordo com o relatório, os dados de satélite não correspondiam aos registros dos mapas de bordo, o que indica uma possível fraude, segundo eles.

Ainda de acordo com o documento, uma das evidências de que a pesca de tubarão foi direcionada é que os barcos envolvidos na operação registraram ter capturado muito mais tubarões do que as espécies para as quais eles tinham licença de pescar.

"A análise destes documentos permite verificar que havia um claro direcionamento da pesca para tubarões [...] pelos responsáveis pelas embarcações fiscalizadas, enquanto estes traziam pouquíssimas quantidades justamente das espécies alvo licenciadas pelo Poder Público", diz um trecho do relatório.

Procurada pela BBC News Brasil, a Kowalsky Pescados, indústria pesqueira de Santa Catarina que armazenava a maior parte da carga apreendida pelo Ibama, negou a prática de qualquer irregularidade e disse que o material retido foi resultado de "270 compras efetuadas desde 2021".

A empresa acrescentou que o material foi entregue por diversas embarcações diferentes, inclusive pertencentes à própria empresa, e rebateu as alegações do Ibama de que os barcos que lhe forneceram barbatanas teriam praticado pesca direcionada.

"A empresa não direciona a pesca para tubarões e, sim, aproveita um importante recurso pesqueiro com alto valor no mercado, tanto nacional, como de exportação, otimizando suas operações", disse a Kowalsky em nota à BBC News Brasil.

De acordo com a empresa, não seria possível apontar que houve direcionamento da pesca porque todo o planejamento se dá em função das áreas de ocorrência de atuns, conforme consta na autorização dada à atividade.

A empresa disse ainda que não há como evitar as áreas de ocorrência de tubarão.

"As áreas de ocorrência de atuns e afins e tubarões são as mesmas, não há como 'escolher' uma área onde haja só tubarões. As licenças para a pesca de atuns e afins preveem a captura da fauna acompanhante", afirmou.

À BBC News Brasil, o Ibama disse, por meio de nota, que as multas foram "devidamente fundamentadas".

"A análise do mérito, bem como o contraditório apresentado pelo autuado deve ser procedido no processo administrativo do Auto de Infração. Afirma-se, no entanto, que os Autos de Infração foram lavrados após longo período de análise, envolvendo equipe multisetorial e que foram devidamente fundamentados por robustos elementos de prova", disse o órgão.

Consequências e perigos

Gil, da Sea Shepherd Brasil, diz que a apreensão de barbatanas feita pelo Ibama mostra como os tubarões estão vulneráveis no país.

"O Brasil tem um papel em dois lados desse comércio. De um lado, ele recebe carcaças da pesca de tubarão capturadas pelo mundo todo porque o Brasil é o maior consumidor desse tipo de carne no mundo. Do outro lado, a gente faz a pesca no Brasil e exporta as nadadeiras, ganhando dinheiro com as nadadeiras e redistribuindo as carcaças para o brasileiro consumir", explica.

De acordo com Gil, 40% dos tubarões estudados já estão em extinção.

Para o professor e doutor em Biologia Fernando Fernandes Mendonça, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a pesca indiscriminada de tubarões representa um risco não apenas aos tubarões, mas à toda a fauna marinha.

"O risco de extinção para o grupo de elasmobrânquios (do qual os tubarões fazem parte) é ainda mais latente porque muitas espécies de tubarões têm uma taxa de reprodução lenta e baixas taxas de crescimento populacional, tornando-as especialmente vulneráveis à exploração pesqueira intensa", diz o professor.

"Um efeito cascata drástico (da redução das populações de tubarão) é bastante provável, considerando que os tubarões ocupam posições importantes no topo da cadeia alimentar marinha. Eles regulam o equilíbrio populacional de suas presas e influenciam indiretamente toda a estrutura do ecossistema marinho", explicou.

O agente Leandro Aranha, do Ibama, aponta outra preocupação: o tamanho do comércio "invisível" de barbatanas de tubarão, que, segundo ele, se desenvolve de duas formas.

A primeira é na compra informal de barbatanas feita por barcos estrangeiros ao longo de toda a costa do Brasil.

Pescadores profissionais ou artesanais brasileiros, cientes do valor das barbatanas, capturam os animais e revendem esse material mesmo sem ter autorização.

A segunda seria burlar o sistema de informação que regula as exportações no Brasil.

Os produtos exportados ou importados pelo Brasil são classificados de acordo com uma espécie de código conhecido como NCM (nomenclatura comum do Mercosul).

Barbatanas de tubarão têm um código específico. Aranha conta que há indícios de que um volume ainda desconhecido desse produto foi exportado sem ter sido declarado corretamente às autoridades.

"Nessa apreensão que fizemos em Guarulhos, verificamos que 1,1 tonelada de barbatana estava saindo do Brasil exportada como peixe congelado", diz o fiscal.

Fernando Mendonça, da Unifesp, diz ser "muito provável" que uma quantidade muito grande de barbatanas esteja saindo do país pode meio do mercado ilegal, sem estar devidamente registrada pelas autoridades.

"Esta apreensão maciça chama a atenção para a possibilidade de outros casos semelhantes e levanta questões sobre a eficácia das inspeções em impedir que grandes quantidades de barbatanas sejam exportadas", diz o professor.

Nathalie Gil, da Sea Shepherd Brasil, defende que uma forma de reduzir a pressão sobre as populações de tubarão na costa brasileira é a proibição, pelo governo, da comercialização das barbatanas.

"A partir do momento em que se proíbe a exportação de barbatanas, isso gera um desinteresse no Brasil pela matança de tubarão por conta desse produto", diz a especialista.

Procurado pela BBC News Brasil, o Ibama disse que estuda medidas sobre a tema.

"Diversas medidas são necessárias para uma melhor gestão da conservação de tubarões e raias. Atualmente, as principais normas vigentes tratam da proibição ao finning e à pesca direcionada à captura de tubarões. O Ibama vem estudando e discutindo com o Departamento de Gestão Compartilhada da Atividade Pesqueira do MMA (Ministério do Meio Ambiente) propostas com esse fim", disse o órgão por meio de nota.

O órgão disse ainda que "vem reforçando a fiscalização da atividade pesqueira, incluindo ações voltadas à proteção de tubarões".