BACK
Opinião

Milan Kundera e um jovem jornalista

Morreu o romancista tcheco, naturalizado francês, Milan Kundera. Tinha 94 anos. O lançamento no Brasil do seu romance capital, A Insustentável Leveza do Ser, coincidiu com o início da minha carreira jornalística. Comecei como editor das páginas de resenhas de livros na Folha de S. Paulo. Tinha 22 anos. Milan Kundera, o romancista da existência, está indissociavelmente ligado a esse período da minha pequena existência.

Eu recebia os livros das editoras, dezenas deles por semana, muitos ainda em provas tipográficas, selecionava os de maior interesse e os repassava a resenhistas que eu mesmo escolhia. Acertávamos um prazo para a entrega da resenha, eu mandava o livro, além das laudas nas quais o autor datilografaria os artigos, e torcia para que o prazo fosse respeitado, porque precisava publicar a resenha na semana de lançamento do livro escolhido, de preferência antes dos concorrentes.

Muitas vezes, os resenhistas eram jornalistas da própria Folha, interessados em assinar um artigo em seção considerada nobre e, não menos importante, em ganhar o livro resenhado. Os jornalistas, na época, ainda liam livros.

Click to continue reading

Quando não encontrava resenhista fora ou dentro do jornal, eu mesmo me encarregava de escrever sobre um livro ou outro. Devo ter recorrido a muitos clichês nas resenhas, mas espero que a juventude me seja atenuante. Era também comum que eu reescrevesse resenhas mal feitas. Mas nem sempre dava tempo e nem sempre conseguia reescrever a contento. Eu procurava dar títulos chamativos às resenhas, alguns deles bem esquisitos. A dificuldade de titular aumentava quando a resenha vinha muito quadrada. A diagramação também às vezes era feita para que as páginas gritassem ao leitor. Uma vez, por exemplo, estourei uma foto de um pódio de Lênin, desenhado por um artista futurista russo, e o dono do jornal achou que eu era comunista. Era apenas para ilustrar uma obra sobre a história do marxismo que, achava eu, valia a pena ser lido.

Livros de grande apelo jornalístico viravam matérias publicadas fora das páginas de resenhas, no caderno cultural da Folha, a Ilustrada, do qual a minha seção fazia parte. Um dos meus colegas de Ilustrada era Pepe Escobar — que, para o meu espanto, virou agente de propaganda de Vladimir Putin; a outra era Barbara Gancia, com quem me encontro vez por outra, em almoços divertidos. Havia também Ruy Castro, hoje biógrafo de sucesso, e Marília Pacheco Fiorillo, que editava o Folhetim, suplemento dominical muito papo cabeça. Quando Marília tirava férias, eu a substituía (tentava).

Os melhores resenhistas eram os que conseguiam entregar o artigo rapidamente, além de bem feito, o contrário do que habitualmente se espera dos oficiais de Cavalaria, que é fazer rápido e mal feito, segundo dizia Heitor de Aquino, que foi secretário de Golbery do Couto e Silva, guardião dos arquivos dos generais ditadores e tradutor da Revolução dos Bichos, de George Orwell, entre outros livros.

As páginas de resenhas, duas por semana, cobriam os lançamentos do mercado editorial e serviam para que muitas pessoas pudessem se abastecer de resumos de romances, biografias e ensaios históricos ou sociológicos — e, assim, tivessem como se gabar nas conversas com amigos e colegas, ou simplesmente não parecer que estavam por fora do que ia pelo mundo acadêmico e literário. O verniz cultural tinha lá as suas utilidades sociais.

Era outra vida, outro mundo, outros eus, com a semente insuspeita deste eu aqui. Não era melhor, não era pior. Bem, talvez fosse pouco melhor, porque ainda havia na imprensa grandes seções dedicadas a livros, apesar de livros não melhorarem necessariamente a vida e o caráter de ninguém. E talvez fosse melhor também porque eu saía do trabalho duro de alma leve, mesmo que insustentavelmente leve quando confrontado com certas realidades.

Hoje, dificilmente falo de livros, embora agora escreva livros. Quase ninguém dá importância a livros, e certamente não são o assunto que esperam de mim como jornalista. Mudei de ramo já faz tempo. Mudei de século. Mas a morte de Milan Kundera me fez voltar 40 anos atrás, voltar ao seu romance capital, mal resenhado por um bobão nas páginas que eu editava, e também voltar ao que significava, para o tcheco francês, ser romancista (Milan Kundera preferia ser chamado de romancista a escritor):

“Ser romancista foi, para mim, mais do que praticar um ‘gênero literário’ entre outros; foi uma atitude, uma sabedoria, uma posição excludente de toda identificação com uma política, com uma religião, com uma ideologia, com uma moral, com uma coletividade; uma não-identificação consciente, obstinada, enfurecida, concebida não como evasão ou passividade, mas como resistência, desafio, revolta.”

Em A Insustentável Leveza do Ser, o romancista Milan Kundera, inteiramente significado como tal, lança mão da ideia do eterno retorno, do filósofo Friedrich Nietzsche, para chegar à contraposição entre peso e leveza:

“O eterno retorno é uma ideia misteriosa e, com ela, Nietzsche causou embaraço aos filósofos: pensar que um dia tudo se repetirá como nós já o vivemos e que mesmo essa repetição se repetirá indefinidamente! O que quer dizer esse mito louco?

“O mito do eterno retorno afirma, pela negação, que a vida desaparece de vez, que não retorna, é semelhante a uma sombra, é sem peso, é morta antecipadamente, e tenha sido ela atroz, bela, esplêndida, essa atrocidade, essa beleza, esse esplendor não significam nada. (…)

Se cada segundo da nossa vida devesse repetir-se um número infinito de vezes, nós estaríamos pregados a uma eternidade como Jesus Cristo à cruz. No mundo do eterno retorno, cada gesto tem o peso de uma insustentável responsabilidade. O que levava Nietzsche a dizer que a ideia do eterno retorno é o fardo mais pesado. (…) Quanto mais pesado é o fardo, no entanto, mais perto as nossas vidas estão da terra, mais real e verdadeiras elas se tornam. O que escolher, o peso ou a leveza? (…) Uma só coisa é certa. A contradição pesado-leve é a mais misteriosa e a mais ambígua de todas as contradições.”

Reli essas linhas de Milan Kundera logo depois de saber da sua morte — a morte que me suscitou, por sua vez, a lembrança dos meus inícios, a voltar 40 anos atrás, quando A Insustentável Leveza do Ser chegou às mãos de um jovem jornalista de 22 anos, encarregado das páginas de livros de um grande jornal e que não entendeu a princípio o quão extraordinária era a obra que chegara até ele.

As recordações trazem consigo peso e leveza ao mesmo tempo. São um eterno retorno sem sê-lo.

Veja aqui:

https://www.metropoles.com/colunas/mario-sabino/milan-kundera-e-um-jovem-jornalista