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Ciência & Tecnologia
As certezas das incertezas
Nos últimos meses, cientistas de diferentes partes do mundo vêm trabalhando juntos para preencher todas as lacunas a respeito do novo coronavírus. No entanto, com a expectativa de encontrar respostas rápidas, desinformações têm circulado pelas redes sociais. A ânsia de encontrar uma resposta definitiva e tranquilizadora para a covid-19 produz uma pressão popular para que as etapas experimentais sejam aceleradas. E é nesse ponto que devemos ser muito cuidadosos com o uso da ciência nas discussões.
Se neste momento não conseguimos ter todas as respostas, isso não pode ser visto como falha por parte da Ciência, mas sim como resultado da combinação entre um problema complexo aliado com uma quantidade massiva de publicações com novos dados sobre os diferentes tópicos relacionados com esta pandemia num tempo muito curto. O processo científico demanda, tempo, paciência, geração de conhecimento, criticismo e resiliência. Pessoalmente, fico impressionado com esse número, cerca de 20 mil na plataforma pubmed em apenas 6 meses, e com a velocidade em que esses trabalhos estão sendo aceitos pelas revistas especializadas. Entendo que, neste momento, a comunidade científica precisa se manter convicta em sua metodologia para não ceder à ansiedade, ainda que justificável, da sociedade moderna.
A análise de uma quantidade tão grande de resultados demora mais tempo para ser discutida e acaba levando a mais perguntas. Esses novos questionamentos passam uma ideia de insegurança para sociedade que, de forma geral, não está acostumada com as incertezas de uma discussão científica. Normalmente, a sociedade só é alimentada com os fatos científicos que trazem certezas. O debate sobre estudos contraditórios acaba ficando limitado às revistas especializadas e às mesas redondas das conferências científicas. Isso acaba gerando uma percepção de que um artigo científico é absoluto e inquestionável, quando não é. Assim, o momento que, à primeira vista, parece ser o início do processo de valorização da ciência no Brasil precisa ser tratado com cautela. Numa época de polarização e de dúvidas sobre a importância da ciência para o desenvolvimento da do país, é importante deixar claro para a sociedade como funciona a geração de dados num método científico.
Para evitar o “achismo” ou a eventualidade, a ciência se dedica a testar as hipóteses que levanta. Através do método científico, o cientista observa, questiona, testa, analisa e conclui sua tese baseado nas evidências obtidas. Os dados e resultados obtidos são divulgados e, então, o trabalho passa pela análise, reprodução e crítica de outros cientistas resultando em outras perguntas. É assim que a ciência se renova, preenche os vazios e evolui. Logo, podemos considerar que a ciência é, na verdade, impulsionada pela falta de conhecimento. Por mais estranho que possa parecer, a ciência está fundamentada em suas incertezas, não havendo verdades absolutas. Apesar da conotação negativa da palavra incerteza no contexto não científico, ela é inerente ao método científico.
A velocidade de informações disponíveis atualmente permite que qualquer pessoa, e também a grande mídia de informação, resolva participar desse processo de discussão. O método científico é uma forma de reduzir as incertezas. Na medida em que os estudos avançam, eliminam-se algumas possibilidades e surgem alternativas. É preciso ter em mente que a ciência é feita de conhecimentos que vão sendo aprimorados e consolidados pelas novas informações e discussões. Não adianta esperar que a Ciência responda questões complexas como as que estamos vivendo com um simples sim ou não. Essas respostas objetivas são limitadoras e a Ciência está em constante expansão.
Apesar de toda a urgência do momento em que vivemos, a sociedade precisa entender que a geração de conhecimento não funciona como um interruptor. Esse é um processo contínuo, que demanda investimento, no qual o somatório de pequenas informações permitirá a análise de um todo para a formulação de uma resposta mais segura e precisa. Exigir dos cientistas respostas que necessitam tempo, aumenta a imprecisão das análises e, consequentemente, das conclusões. Contudo, é importante ressaltar aqui que diante desses milhares de trabalhos publicados, um número muito pequeno deles passou pelo processo de retratação. Assim, a ciência mostra que não decepciona e que é incansável na busca pelo conhecimento. Por exemplo, se hoje podemos diagnosticar a presença do vírus, bem como a fase de infecção, foi graças à ciência.
Vejo com bons olhos essa aproximação da sociedade, especialmente a brasileira, com a ciência, porém para isso é muito importante que os rituais da discussão científica sejam preservados para evitar o julgamento errado. Recentemente, esse tema foi abordado num artigo do site português “Público” - O desafio de comunicar a incerteza e o papel dos comunicadores de ciência”. Acredito que a formação de uma sociedade mais familiarizada com o processo científico trará muitos benefícios para futuras discussões, até mesmo àquelas que não são científicas.