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Ozempic: como o remédio que faz emagrecer está engordando a economia

A indústria farmacêutica está diante de uma nova revolução. Reeditando o desempenho de remédios icônicos que se tornaram marcos históricos para o mercado, como o Prozac (antidepressivo), o Lipitor (que combate o colesterol alto) e o Viagra (contra a disfunção erétil), o Ozempic se transformou em um fenômeno global de vendas, com um potencial econômico capaz de mudar o status da empresa fabricante – a Novo Nordisk – e catapultar o Produto Interno Bruto (PIB) da Dinamarca, país-sede da companhia.

O princípio ativo do Ozempic é a semaglutida, que simula a ação do GLP-1, hormônio produzido pelo intestino que desencadeia uma série de reações bioquímicas e transmite ao cérebro uma sensação de saciedade. Em linhas gerais, o remédio diminui a fome e regula o nível de açúcar no sangue. Popularmente conhecido como “canetinha azul”, é administrado com uma injeção subcutânea, de aplicação semanal.

Indicado, primordialmente, no tratamento do diabetes tipo 2, o medicamento é muito eficaz para a perda de peso, justamente porque inibe o apetite. Com uma massiva utilização “off-label” (fora da recomendação de bula), o Ozempic logo se tornou um sucesso absoluto de vendas em diversos países do mundo.

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No Brasil, as vendas do Ozempic superaram R$ 3,17 bilhões em menos de um ano, entre julho de 2022 e junho de 2023. Não é um remédio barato. O preço da “canetinha azul” no país varia entre R$ 994 e R$ 1,3 mil (o kit com quatro doses, para um mês de tratamento).

Na Espanha, uma caneta com quatro doses sai por 130 euros (cerca de R$ 680, pela cotação atual). No Reino Unido, o valor é de 150 libras (R$ 903). Nos Estados Unidos, as quatro doses mensais saem por US$ 890 (R$ 4,3 mil).

De acordo com a plataforma Consulta Remédios, houve um aumento de 91% na busca pelo medicamento nas farmácias brasileiras no primeiro semestre, na comparação com o mesmo período do ano passado. Tamanho frenesi levou ao desabastecimento em vários estabelecimentos no país, assim como já havia ocorrido nos EUA.

Um dos maiores fenômenos da história

Embalada pelo sucesso do Ozempic, a dinamarquesa Novo Nordisk assumiu, no início de setembro, o posto de empresa mais valiosa da Europa, desbancando o conglomerado de luxo LVMH (que detém marcas como Louis Vuitton, Dior e Givenchy). A farmacêutica é avaliada em cerca de US$ 430 bilhões, um valor superior ao PIB da Dinamarca, estimado em US$ 395 bilhões.

No primeiro semestre, a economia dinamarquesa avançou 1,7%, na comparação anual. Projeções apontam que, sem o bom resultado da indústria farmacêutica (atribuído, em grande parte, ao Ozempic), o PIB do país teria recuado 0,3% no período. Recentemente, o Ministério da Economia dobrou a estimativa de alta do PIB em 2023, para 1,2%. No relatório em que as projeções foram revisadas, a Novo Nordisk é mencionada 30 vezes.

“Um sucesso desse tamanho nunca tem apenas um fator responsável. É uma combinação entre a evolução da ciência na indústria farmacêutica e a necessidade de tratamento para o diabetes, que é uma epidemia mundial. Além disso, existe uma questão estética, a busca constante por perder peso”, afirma Alexandre França, CEO da Lupin/MedQuímica e especialista no setor farmacêutico.

“O Ozempic é, sem nenhuma dúvida, um dos medicamentos de maior sucesso no mundo em todos os tempos, ao lado do Lipitor e do Viagra. Está no patamar do Lipitor, e o Viagra aparece um pouco abaixo”, prossegue França. “Como é um medicamento inovador, o Ozempic não tem muitos competidores no mercado. Isso faz com que as vendas do remédio sejam uma demanda natural. Um único produto, quando bem sucedido e de qualidade, pode transformar uma empresa, um país ou uma economia.”

Nas primeiras duas semanas após o lançamento pela Pfizer, em 1998, foram expedidas mais de 150 mil receitas de Viagra nos EUA. Depois do “boom” da pílula azul, as vendas rondavam a casa dos US$ 2 bilhões em 2012. Em 2017, foram de US$ 1,2 bilhão. O Lipitor, também da Pfizer, chegou ao mercado em meados dos anos 1980. Em 2006, alcançou seu recorde anual de vendas (US$ 12,8 bilhões).

“Quando o Lipitor explodiu, não tínhamos redes sociais nem essa enxurrada de informações à qual todos têm acesso hoje. E, mesmo assim, foi um grande sucesso e muito inovador”, recorda França. “O Ozempic está marcando uma época e iniciando uma nova fase no tratamento do diabetes e também no controle da obesidade.”

A economista Carla Beni, da Fundação Getulio Vargas (FGV), também compara o fenômeno atual ao êxito comercial – e social – de outros medicamentos no passado. “Estamos vivendo uma situação parecida com a explosão do Viagra. Os objetos de desejo da sociedade passam por algumas características como a juventude, a magreza, a felicidade e a virilidade. Isso explica o Ozempic, o Viagra, os antidepressivos e todos os tratamentos estéticos. Há uma necessidade cada vez maior de se manter dentro desse suposto padrão”, afirma.

Segundo Caio Camargo, especialista em inovação no varejo, o sucesso global do Ozempic é consequência da “entrega” proporcionada pelo remédio – a perda de peso de forma relativamente rápida. “Embora exista uma controvérsia em relação ao possível uso inadequado desse medicamento, o efeito do emagrecimento é determinante para esses resultados. A promessa de resposta rápida faz com que ele seja uma saída procurada por muitas pessoas, o que até já resultou no esgotamento do produto em muitas farmácias. Nem a própria indústria conseguiu fornecer o suficiente para a demanda”, diz.

“Não é todo medicamento inovador que é capaz de mudar todo um cenário econômico de uma empresa ou de um país”, ressalta Alexandre França, da Lupin/MedQuímica. “Isso significa que é importante que os governos apoiem as pesquisas. A grande maioria dos centros de pesquisa mundiais passam pelas universidades, que são verdadeiros polos de cientistas. Se a indústria farmacêutica trabalhar em conjunto com os governos, em escala global, vamos avançar muito mais rapidamente no tratamento de doenças que ainda são grandes desafios para a medicina.”

Segundo França, o próximo fenômeno de vendas do setor farmacêutico surgirá em um intervalo bem menor do que as quase três décadas que separam o Viagra do Ozempic. “Esse espaço de tempo para o surgimento de um remédio ‘blockbuster’ vai diminuir. Não vai demorar mais 20 ou 30 anos para surgir um novo medicamento com o mesmo impacto. O processo está muito mais acelerado”, avalia.

Os riscos (econômicos) do uso “off-label”

Apesar do sucesso avassalador do Ozempic, os especialistas ouvidos pelo Metrópoles alertam para os riscos do uso “off-label” da medicação. Para eles, a utilização indiscriminada do remédio para perder peso pode custar caro à indústria farmacêutica no futuro, levando a perdas econômicas que, eventualmente, anulem os resultados positivos obtidos até aqui.

“Se, no futuro, eventualmente for descoberto que esse uso ‘off label’ causa algum tipo de contratempo ou malefício, isso pode gerar um revés muito pesado para a indústria farmacêutica, até pela dimensão econômica envolvida. Mesmo a economia da Dinamarca, que agora sente efeitos positivos dessas vendas, pode ser prejudicada”, afirma Caio Camargo.

Alexandre França tem a mesma avaliação. “A indústria farmacêutica já tem uma imagem um pouco dúbia, vista às vezes como vilã, que ganha dinheiro com a doença das pessoas. Existe um risco à imagem do setor, como um todo. A indústria deve ser a primeira a trabalhar para que o Ozempic e quaisquer medicamentos sejam usados da forma correta e determinada pela bula”, diz.

O que diz a Novo Nordisk

Procurada pelo Metrópoles, a Novo Nordisk afirmou que “adere a altos padrões éticos, bem como a todas as regulamentações, e não promove nem incentiva nenhuma promoção ‘off-label’ de seus produtos”. “Atualmente, o único medicamento da companhia comercializado no Brasil para o tratamento da obesidade e do sobrepeso é o Saxenda (liraglutida), lançado no país em 2016”, diz a companhia, em nota.

Sobre o desabastecimento em farmácias, a empresa informa que “todas as apresentações de Ozempic (caneta com 0,25mg e 0,5mg e caneta com 1mg) no Brasil têm enfrentado disponibilidade intermitente durante 2023 devido à demanda maior que a prevista”. “É importante ressaltar que não há qualquer problema regulatório ou de qualidade com nenhuma das apresentações de Ozempic e a empresa notificou a autoridade sanitária brasileira sobre as restrições de fornecimento do produto conforme estabelecido nas legislações vigentes”, diz a Nova Nordisk.

“Ao longo deste ano, pessoas com diabetes tipo 2 que fazem tratamento com Ozempic e que não encontrem o medicamento têm a opção de migrar para outras opções de análogos de GLP-1 disponíveis no mercado brasileiro. A troca deve sempre ser feita em consulta com um médico devidamente habilitado e sob sua estrita supervisão”, afirma a empresa.

No Brasil desde 1990, a Novo Nordisk tem uma fábrica em Montes Claros (MG), um centro de distribuição em São José dos Pinhais (PR) e uma sede administrativa em São Paulo. A empresa conta com 2 mil funcionários no país. No mundo, são 57 mil profissionais atuando em 80 países.