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Quando o celular deixa de ser uma utilidade e se torna um vício? | O TEMPO
Especialistas falam sobre a dependência do aparelho e as consequências de uma rotina cada vez mais conectada
Conhecimento
É difícil imaginar uma rotina que não envolva o celular. O aparelho é tão presente na vida moderna que acompanha a maioria das pessoas em uma infinidade de tarefas – desde as mais simples, como acordar após o alarme do despertador, até as mais complexas, como o trabalho e a vida financeira, entrelaçada aos milhares de aplicativos de bancos e compras.
Com uma utilização que acaba estando tão interligada a diferentes atividades diárias, o aparelho acaba acompanhando as pessoas durante grande parte do dia. No Brasil, por exemplo, mais da metade das pessoas entrevistadas pela Hibou, empresa de monitoramento de mercado e consumo, confessaram não conseguir ficar nem uma hora longe do aparelho. O estudo, que ouviu 2.000 pessoas no país, foi divulgado no final de 2022.
Outro relatório, este feito pela empresa de análise de aplicativos App Annie, também chama a atenção para a intensidade do uso dos smartphones no país. Conforme a pesquisa, o Brasil é um dos locais onde o aparelho é utilizado por mais tempo no mundo. Com resultados divulgados também no ano passado, o estudo analisou dados de dez países e mostrou que os brasileiros passam mais de ¼ do dia usando aplicativos ou navegando na internet pelos celulares. O uso diário no Brasil, de 5,4 horas, supera a média mundial, que é de 4 horas e 48 minutos.
Conselheira do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRP-MG), Cristiane Nogueira pontua que a utilização cada vez mais intensa do celular é justificada, primeiramente, pela própria praticidade representada pelo aparelho. “É uma ferramenta que tem características próprias, é portátil, podemos levar para onde vamos. Ainda tem a questão da internet, que acaba nos conectando a uma infinidade de possibilidades de diálogos e de conteúdos”, pontua.
Conforme a psicóloga, o aparelho acaba se juntando a outras telas que também se tornaram parte da rotina das pessoas – e que não deixam, também, de ser prejudiciais. “Hoje não trabalhamos mais sem computador, sem mídias ou telas”, afirma. Os smartphones, porém, aparecem com mais força por causa das diferentes atividades que ficam ao alcance das mãos. “Ele representa o uso de uma série de aparelhos em um só. Uma câmera, uma filmadora. Antigamente era tudo separado, hoje temos no bolso algo que permite uma série de acessos e de produtos que auxiliam a nossa rotina”.
Embora a praticidade e a utilidade dos smartphones sejam pontos que corroborem o seu uso, a utilização intensa e a forma como as pessoas lidam com os aparelhos podem oferecer riscos e indicar, também, patologias. Este é o caso da nomofobia, transtorno caracterizado pelo medo irracional de estar sem o celular. O termo, que define a doença, é derivado da expressão em inglês “no mobile phobia”, que em tradução livre indica a própria fobia de não estar com o aparelho.
Em entrevista a O TEMPO, a psicóloga Leni de Oliveira explicou que a patologia aponta também outros transtornos já existentes, como o de ansiedade e o de fobia social. “Trata-se de um distúrbio muito atrelado à questão da insegurança e da baixa autoestima. De forma geral, é como se sem o aparelho a pessoa se sentisse desprotegida, como se pudesse acontecer algo a ela, e o telefone fosse uma forma de se salvar. Cria-se, assim, uma dependência, muito ligada à falsa sensação de controle, como se ter o telefone ao alcance da mão fosse um porto seguro”.
A psicóloga Cristiane Nogueira observa, ainda, que não só o transtorno, mas como o próprio uso abusivo dos smartphones, provoca também prejuízos nas relações entre as pessoas. “No campo relacional, isso acaba sendo muito impactante. É como se a gente tivesse deixado de estar presente. Precisamos começar a fazer o exercício de deixar o celular de lado enquanto estivermos convivendo. Hoje estamos mais coexistindo do que nos relacionando”, afirma.
A estudante Camila Giovana, 18, concorda com a percepção da psicóloga. Considerando que a utilização indiscriminada do celular pode ser comparada a outros vícios como o cigarro, por exemplo, a jovem ressalta que as pessoas têm deixado de se relacionar por causa do aparelho. “Não conseguimos largar o celular por muito tempo nem nos socializar direito com os nossos amigos”, confessa.
A situação corriqueira – não é difícil ver pessoas grudadas aos smartphones nos mais diversos ambientes – acaba impactando também o comportamento humano. “Já tem sido comum observar a dificuldade de jovens de ir ao encontro de outros. Coisas que para outras gerações eram rotineiras, agora, são impedidas por uma inabilidade que está sendo gerada pelo uso desses aparelhos”, observa Cristiane.
Como perceber que o uso do celular está exagerado?
Embora as horas de uso do aparelho sejam um alerta – inclusive por causar danos à saúde física, provocando prejuízos posturais e visuais, por exemplo –, a forma como as pessoas lidam com os smartphones também pode indicar que aquele uso tem ultrapassado os limites do que pode ser considerado saudável.
Conforme o psicólogo João Gabriel Grabe, essa barreira é ultrapassada no momento em que deixamos de viver algo ou alguma experiência por causa do aparelho. “Um almoço rápido, em que as pessoas não lembram o que comeram por estarem online; um show vivenciado não pelo olhar próprio, mas pelo olhar da câmera; uma relação em que não existe um diálogo que não seja pelas mensagens enviadas ou até mesmo memes e vídeos, mesmo que estejam um ao lado do outro”, exemplifica.
O uso do celular como uma fuga também é algo que precisa ser avaliado. “Muitas vezes utilizamos as redes sociais e todos os estímulos que os smartphones nos oferecem para escapar da realidade ou fantasiar situações possíveis”, observa. “Tudo isso como uma forma de não ter que lidar com situações ou relações que nos causam desconforto na realidade”, completa.
A necessidade de estar sempre conectado ao smartphone também pode representar perigos. “Discutimos muito a dependência emocional, mas a dependência do celular também é algo factível. Hoje em dia, perder o celular implica ficar depenado de tudo, de aplicativo de banco, de uma série de coisas que organizam a nossa vida e da qual a gerência da nossa vida depende. São várias tarefas condensadas ali, mas há também outro aspecto, já que, estando com o celular, eu nunca estou sozinha”, ressalta.
Uso do celular precisa ser mais discutido
Em 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou uma série de recomendações para crianças de até 5 anos, e entre elas estavam indicações de que a faixa etária não deveria passar mais que 60 minutos por dia em atividades passivas diante de uma tela de smartphone, computador ou televisão. A organização afirmou ainda que aqueles que tivessem menos de 1 ano não deveriam passar um minuto sequer diante de dispositivos eletrônicos.
Parte de um manual de conscientização sobre o sedentarismo e a obesidade nas crianças, a iniciativa da OMS já deixa claros alguns dos impactos negativos da utilização de eletrônicos, entre eles os smartphones. A discussão de síndromes como a nomofobia e a “fomo” –distúrbio caracterizado pelo temor dos usuários de redes sociais de não estarem inteirados do que está acontecendo a todo momento – também lança luz sobre a forma como temos nos relacionado com os celulares.
Os exemplos, porém, são só o começo. Com uma participação tão intensa no cotidiano humano, os celulares e seus usos precisam ser ainda mais debatidos. É isso que aponta a psicóloga Cristiane Nogueira. “Costumo dizer que não fazemos esse tipo de debate em relação ao carro. Já sabemos os riscos que um veículo pode trazer, existe toda uma educação para o trânsito, o pedestre e o motorista. Ninguém fala ‘não use o carro’, então não devemos falar ‘não use o celular’, mas acho que nos falta uma educação para o uso responsável do aparelho e das telas, porque são coisas que chegam na nossa vida de uma maneira muito imediata e avassaladora”, afirma.