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Opinião

Mais um escândalo por Lula Vieira

Leio nos jornais, estarrecido, que uma cadeia de supermercados no Rio de Janeiro foi denunciada porque os frangos que vende não vêm providos daquela parte final, na forma de um pequeno nariz, chamada vulgarmente (pelo menos no meu bairro em São Paulo) de sobrecu. Ou seja, diz a denúncia que quem compra um frango na tal cadeia recebe asinha, coxinha, peitinho, pescoço, quase tudo do frango. Menos sobrecu. Eu fico estarrecido, em primeiro lugar, pelo fato de que alguém se deu ao trabalho de verificar no franguinho gelado a inexistência deste apêndice. Quem seria suficientemente doido por sobrecu para sentir falta dele? Admitindo que seja realmente uma falha comercial vender frango desobrecusado, como agir? Liga-se para o Serviço de Atendimento ao Consumidor do supermercado e exige-se o sobrecu a que se tem direito? Em nome de quê? Como se paga o frango pelo peso, não se pode alegar má-fé monetária. O jeito é reclamar que a embalagem não alerta que aquele frango não está, digamos, completo. Um aviso dizendo “Atenção: frango sem sobrecu!” Ou até mesmo com um enfoque positivo: “Os únicos já sem sobrecu!”. Acredito que deva existir um grupo de pessoas que adora sobrecu, sem qualquer tipo de conotação. Não nos esqueçamos que antigamente mamas de porca e nariz de leitão eram considerados iguarias definitivas. Essa gente, sobrecudependentes, pode ter se sentido enganada. Eu confesso que apesar de ser metido a gourmet, jamais ouvi falar das excelências do sobrecu, até porque fica difícil comentar esta preferência gastronômica em público: “Querida, ontem comi um sobrecu divino!” Tudo bem, sou ignorante em tanta coisa que não seria de estranhar mais essa falha. É bem capaz do sobrecu ser o melhor do frango. Mas o que mais me embasbacou foi esta discussão ter saído nos jornais com destaque. Uma puta de uma crise, uma violência assustadora, denúncias das mais diversas, o mundo parecendo que vai acabar e um jornal se dá ao luxo de abrir espaço para esta polêmica: se é ético vender frango sem sobrecu. Pensando bem, acho que no fundo, no fundo, há uma lógica. Trata-se de um muito humano desejo de fugir da realidade Se a gente ficar o tempo todo ruminando as desgraças do dia-a-dia, a epidemia, a obrigação de ficar em casa, o medo da contaminação, a má distribuição de renda, o desemprego, a violência, acaba ficando tenso e paranóico. É muito saudável que se permita perder algum tempo se preocupando com assuntos menos dramáticos. Até agora a direção do supermercado não se manifestou. Imagino até que, ouvida a assessoria de imprensa e a agência de publicidade, promova-se o primeiro recall de frango da história do comércio. Também é possível se descobrir que o responsável por tudo era o funcionário da seção de embalagem, que solertemente retirava o sobrecu e desviava para uma quadrilha especializada. Estou quase vendo a foto dos tiras exibindo os sacos de sobrecu escondidos num freezer de uma casa da periferia. Um verdadeiro sobrecuduto ou sobrecutráfico, com ramificações até na Suíça. Mais um escândalo.

Vocês podem achar que estou gastando muito tempo falando de um uropígio, que é o nome científico desta parte mitriforme das aves. Numa época de crise ética como o Brasil está vivendo, soa ridículo usar tanto espaço em torno de um simples cóccix emplumado, de frango de granja. Se ainda fosse cóccix emplumado de rainha de escola de samba, vá lá. Mas, puxa vida, de franguinho congelado parece exagero. Acontece que, para quem gosta e sabe comer, sobrecu sobre, sambiquira, micula é a parte mais sofisticada de um frango ou de uma galinha. E já é assim há milênios. A história do sobrecu na cozinha mundial é gloriosa. Na Itália sobrecu é chamado de “ciciareu”, e não é para qualquer um, se é que me entendem. É coisa finíssima. Em Minas sobrecu é chamado de “curanchim”, e o grande Aurélio confirma este regionalismo. No último júri do Festival de Propaganda do Rio de Janeiro, promovido pela ABP, Luiz Vieira (da DPZ), Fabinho Fernandes e Gustavo Bastos deram numerosas opiniões a respeito da trajetória do sobrecu nas mesas internacionais. Tarcísio, proprietário do afamado Mouton Rouge, criou uma tese a respeito da diminuição do tamanho dos sobrecus através dos tempos. Segundo ele, provavelmente os sobrecus de antanho eram maiores porque os frangos morriam de forma mais cruenta e por este motivo tinham mais medo que seus sucessores atuais, que nem tomam conhecimento da proximidade do sacrifício, em fábricas que mais parecem linhas de montagem. Ou seja: quem tem mais medo, tem mais sobrecu, uma inversão do antigo ditado que afirma exatamente o contrário. Confesso que eu estou me sentindo um pouco como aquele homem que sabia javanês. Provavelmente sou a maior autoridade viva em sobrecu. Mas o que fazer com esse profundo conhecimento? Tem alguém aí interessado numa palestra a respeito? Como colocar no meu currículo mais esta especialidade? Fica feio colocar no meu cartão de visita a identificação: “Doutor em sobrecu” ? Devo criar um site www.adorosobrecu.com.br? Quem patrocinaria? Não sei não, mas parece que novamente eu descubro que a maior parte das coisas que eu sei é completamente inútil.