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Opinião
Memórias de um moribundo
A próxima vez que alguém usar a expressão full-service para definir a empresa onde trabalha, seja uma agência de publicidade, uma assessoria de comunicação ou um simples e honesto botequim, vou relativizar a informação, considerando apenas um exagero promocional, tão comum em negócios.
Na área da propaganda, Full service de verdade, só oferece uma única empresa no Brasil e duvido que alguém possa me desmentir, bastando ouvir a história que eu tenho para contar. Ela tem alguns anos, é preciso que se diga, pois fosse nos dias que correm, não só as circunstâncias como o desfecho poderiam ser muito diferentes. Era num tempo sem pandemias. Morria-se de tudo, mas o vírus atual ainda não tinha dado o ar da desgraça. Estou falando sem nenhuma pudicícia da Nova Onda, do Passarinho e do Vanderlei, o maior exemplo de full-service do mercado publicitário. E pode acrescentar nesta lista desde gigantes multinacionais a home offices, onde toda empresa cabe do quarto da empregada. Vocês conhecem a Nova Onda, produtora de som, tradicional, criativa, premiada, responsável por
trilhas e jingles que fizeram e fazem muito sucesso, o que tem lhe garantido uma vidinha bastante próspera vendendo/cantando seus remédios, supermercados, fogões e margarinas, com a maior dignidade, lisura e qualidade. Além do que é formada por gente do maior caráter, ética e que paga em dia, o que deveria ser obrigação e nem mereceria destaque, não fossem os dias que correm.
É preciso que se explique bem o que aconteceu para que fique registrado com a devida pompa este momento glorioso da indústria da comunicação, o estabelecimento do estado da arte em atendimento.
Acontece que minha empresa precisava de um jingle, com urgência, como sempre. Marquei uma reunião de briefing com o Passarinho e fui cuidar de outra coisa. Nesse meio tempo comecei a ter uma febre inexplicável, falta de ar e uma espécie de fraqueza. Apaguei. O médico chamado às pressas achou que era grave e lá fui eu, gloriosamente deitado numa ambulância para ser recebido na emergência de um hospital. O sonho da egotrip. Sirenes, luz vermelha, maca, travellings e cenas aceleradas. Sai da frente que vem aí um moribundo. Era grave, uma pneumonia daquelas que borracheiro de beira de estrada condena a carcaça. Logo
eu que não fumo há 35 anos e se exagero em alguma coisa faço-o no vinho que, ao que eu saiba, não se destina ao pulmão. A não ser que os meus vinhos seguem o wase e erram o caminho. Mas foi uma farra. Fizeram de tudo, hospital competente, mantiveram-me vivo e me submeteram aos maiores vexames que se pode imaginar. Apertos, dedadas, pressões, picadas (de agulhas, de agulhas!) e litros de antibióticos. E a mim sobrou ficar deitado, pensando na perra vida, um fluxo de oxigênio num tubinho e um canal de televisão passando um documentário sobre a África, aliás um hipopótamo brigando com um elefante. Devem achar que emoções fortes não são aconselháveis para os enfermos, donde a proibição de assistir ao Jornal Nacional. Fiquei sendo, furado, assoprado, aspirado, com o problema de que, para mostrar alguma intimidade comigo, os enfermeiros e enfermeiras me chamavam de Luiz, nome que me é tão familiar como Robervaldo. Vestido com uma camisolinha ridícula, bunda de fora. Ridículo tão grande que dormi. É aí que entra o que eu quero contar. Num determinado momento, vestido de branco,
aparece ao lado da minha maca o Vanderley, dono da Nova Onda, sócio do Passarinho, me fazendo perguntas. Porra, passar briefing num CTI? Ou ele ou eu tínhamos enlouquecido. Mas era ele, de jaleco, com crachá escrito MEDICO. Confesso que não me lembro do que falamos. Teria eu discutido o público-alvo do jingle? Cantarolado alguma sugestão? Discutimos verba, prazo, gênero? Mas o pior não é isso. Vanderley examina umas fichas amarradas na minha cabeceira, começa
a revisar tudo que está sendo feito, pergunta coisas, confere números, é tratado com toda referência, parece entender o que está fazendo, conclui que a qualidade do atendimento está perfeita. E vai embora.
Ao voltar a mim, dia seguinte, tive absoluta certeza de que delirei. Fiz uma reunião de criação na emergência de um hospital. Ninguém viu? Não me colocaram camisa de força? Bem, a verdade é que Vanderlei além de jinglista é médico, trabalha no hospital, soube que eu estava internado e foi dar uma força. Segundo ele, falamos de meus padecimentos. O briefing do jingle eu passei para o Passarinho no dia seguinte. Mas agora eu pergunto, numa boa, tem outra produtora no mundo que atende cliente no CTI?
Alguém depois disso vai ter coragem de se considerar full-service?
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