BACK
Opinião

Miele

Dizem que o ócio é o pai de muitos vícios. Não sei porque não cheguei ao caos total em termos de comportamento. Agradeço a Deus ter parado de beber há um ano e meio. Esta quarentena seria a desculpa perfeita para começar a beber no café da manhã. Essa minha fase de bom moço (que remédio...) tem me levado a fazer coisas que nem acredito que um dia chegasse a fazer. Entre outras bizarrices estou arrumando minha biblioteca, cuja bagunça é estarrecedora. Cada livro tem, além da história que conta, a história de como chegou às minhas mãos. E são muitos, milhares mesmo, pois leio compulsivamente, fui diretor de várias editoras e meus amigos editores e escritores me presenteiam com seus lançamentos. Nesta arrumação toda, encontrei um livro de cuja elaboração eu participei, onde o grande Miele conta parte de sua vida no showbiz brasileiro. Produtor, apresentador, diretor, redator, Miele conviveu praticamente com todos os grandes nomes da música, do teatro, da televisão e do cinema. A cada reunião para revisar o livro nós bebemos quantidades cavalares de álcool. Normalmente ficava no vinho. Miele no Whisky . Não posso reclamar da despesa, pois Miele aparecia na minha casa devidamente escoltado por uma ou duas garrafas, as quais ele se encarregava de acabar durante o encontro. Na minha agenda eu colocava que a reunião começaria às 8 da noite e iria até...acabar a bebida. A estrutura do livro é simples: ele fala de gente que conheceu de perto, trabalhou junto. Tem Ellis, Tom, Roberto Carlos, Chico Anísio, e dezenas de outras figuras maravilhosas, incluindo até Joan Crawford com quem ele dividiu o palco cantando. São retratos bem humorados, apresentados pela ótica de quem sempre soube conviver com todo mundo e que teve um olhar permanentemente generoso para os defeitos dos outros. Durante muito tempo Miele foi também publicitário, pois escrevia e produzia espetáculos para uma produtora de áudio visual, a Miksom, introdutora no Brasil (juntamente com a AV Estúdio) de multivisões de tirar o fôlego, com projeções simultâneas de mais de 100 máquinas de slides, comandados por computador. Aliás, nessa época ele cometeu um das maiores gafes da história da propaganda. Foi numa convenção da Volkswagen que reunia os revendedores do Brasil inteiro. Na mesma época foi preso no Brasil o mafioso italiano Tomazzo Buscetta, que os telejornais chamavam de Busqueta embora a pronúncia certa fosse buceta mesmo. O infeliz não foi preso por uma operação Vagina de Ouro, Perseguida, ou coisa parecida, realizada pela Polícia Federal. A besta do italiano tentou subornar um policial após um delito de trânsito, e conseguiu ir em cana por desacato. Miele contava a história que o tio do Tomazzo veio até o Brasil visitar o sobrinho na cadeia, uma infecta sela de

delegacia de bairro e disse para ele: (versão brasileira Lula Vieira) “tu desonrastes a família. Teu pai, tua mãe, teus irmãos, tios e sobrinhos. Em nosso país quando um Buscetta vai preso é porque matou um juiz, foi encontrado com uma tonelada de cocaína, explodiu uma refinaria de petróleo. Tu foste preso por um policia brasileiro, catzo! . Tu não és um Buscetta. Tu és um babaca!” Miele contava esta história imitando um italiano velho, numa interpretação digna de Marlon Brando. E improvisava o tempo inteiro, inventando os crimes que a família cometera na Itália e que o patriarca se orgulhava, assim como o desprezo pelo sobrinho idiota. Na convenção da Volks, Miele resolveu alongar o papo e improvisou: “na Itália, figlio de una putana, os Buscetta quando vão em cana, vão no próprio carro. Masseratti, Lancia, Alfa. Tu...tu não. Tu vem algemado num fusquinha de merda”. Miele se referia ao carro padrão da polícia militar, mas a diretoria da Volks evidentemente não achou graça nenhuma. Nem mesmo com as explicações envergonhadas do Mele. Esta história é parecida com outra do Jô Soares que falando num show oferecido na inauguração de uma fábrica de massa de tomates, inventou a história aparentemente absurda que a fábrica foi criada porque o comendador proprietário de uma enorme plantação não sabia o que fazer com os tomates que apodreciam, ficavam amassados no transporte, tinham bichos e daí teve a brilhante ideia de fazer molho de macarrão com eles. Nessa altura o velho comendador, um italiano primo distante dos Buscetta, olhou em volta e perguntou fora de si: “quem foi o figlio di puttana que contou pra ele?”