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Opinião

Pássaro milongueiro

Me deu uma imensa saudade do meu ex-dupla na Lintas, o Fernando Gerardo. Ele era um argentino engraçadíssimo, um doido completo, tremendo bom caráter e algumas vezes completamente mal humorado e teimoso como todo bom portenho. Já beirando os setenta, andava de moto, praticava esportes radicais e tentava (dizia que não apenas tentava) comer estagiárias, colegas, recepcionistas, modelos e tudo o mais que lhe passasse à frente e estivesse na categoria sexo feminino. Nessa hora apelava para os golpes mais baixos como demonstrar deslavado amor à natureza, aos animais, gostar de música romântica e seja lá o que fosse que pudesse facilitar o caminho em direção ao coração das incautas.

Outro amor que ele tinha era o Rio de Janeiro. Conhecia o Rio e seus recantos muito mais do que qualquer historiador nativo, além de freqüentar botequins perdidos pela Zona Norte, restaurantes típicos de subúrbio e praias distantes. Um dos dias mais felizes de sua vida foi receber o título de Cidadão Carioca, já bem velhinho e às vésperas da morte, numa noite comovente onde, com voz trêmula e mal de Parkinson conseguiu relembrar de muitas aventuras de sua vida intensa, inclusive algumas bobagens que fizemos juntos quando eu era um garoto de pouco mais de 20 anos e ele já um senhor, muito mais disposto e atlético do que eu.

Uma das suas aventuras mais engraçadas foi quando ele resolveu testar uma geringonça ainda desconhecida por aqui, um pára-quedas que, puxado por uma lancha, erguia-se a muitos metros de altura e virava um reboque alado. Deu para entender? Uma asa delta puxada por uma corda. Coisa de maluco. Exatamente o que o Fernando gostava. O problema é que ele resolveu testar o engenho na Lagoa Rodrigo de Freitas, sem o auxílio de alguém que já tivesse praticado o esporte. Pediu para um amigo que pilotasse a lancha, colocou a trapisonga às costas e mandou ver. A lancha ganhou velocidade e subitamente Fernando se viu voando a uns trinta metros de altura. Segundo ele, a Lagoa parecia um pires de água, onde um pontinho minúsculo era a lancha que o rebocava.

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O encanto levou uns poucos instantes, pois o Fernando, quando viu a lancha ir em direção às margens da Lagoa, intuiu a imensa cagada. Ela poderia dar a volta, mas Fernando iria continuar a trajetória até a tensão mudar para o outro sentido. Foi exatamente o que aconteceu. O amigo piloto da lancha virou a embarcação junto à margem e o Fernando seguiu em frente. Ultrapassou a avenida que margeia a Lagoa e entrou pela janela de um apartamento do terceiro andar de um prédio, arrebentando vidros, esquadrias de alumínio e a mesa de almoço da família que compartilhava uma alegre refeição de sábado à tarde. Instaurou-se o caos. Entre cacos de vidros, carne assada, maionese, cordas, garrafas de vinho, saiu um argentino muito magro e barbudo, meio ensangüentado, que com curvaturas humildes dizia: “perdón, perdón señora, perdón señor”.

Tudo já seria uma enorme de uma confusão, se o animal do Fernando não tivesse visto que debaixo de uma toalha de mesa estava uma mocinha de seus vinte anos, de camisetinha justa, toda molhadinha de molho de salada, olhar assustado. Ele, galantemente, oferece-lhe a mão para levantar e não perde o ritmo: “mira, mas que niña guapa!” O dono da casa achou que já era demais. Entrar pela janela, destruir a sala, arruinar o almoço, vá lá. Mas querer comer a filha na cara-de-pau já era demais. Quase devolveu o Fernando pelo mesmo caminho que ele tinha entrado.