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Opinião

Ressaca

Antes de mais nada, me permita dar a minha receita contra a ressaca, cuja eficiência é igual a qualquer outra, nenhuma.

Mas lutar contra a sensação de gosto de corrimão de INPS na boca, é parte da cura. Pelo menos moral.

Ressacados sim, entregues nunca! O que eu faço? Pego um suco de tomate de boa qualidade, coloco num copo com muito gelo, acrescento vodka, suco de limão, pimenta e sal e bebo. Dirá você: mas esta é a receita de Blood Mary!

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Minha resposta é simples. Parece ser, mas não é. Trata-se de um remédio e assim deve ser encarado.

Logo, a receita que lhe dei não é de um drinque, mas um produto com finalidade medicinal. Depois disso tomo 45 gotas de Novalgina, 30 gotas de Elixir Paregórico e um Imosec que, pelo que sei, está proibido no Brasil, mas quando viajo trago uma boa quantidade exatamente para estas emergências.

Essa formulação contempla dor de cabeça, cólicas e a vontade de ir ao banheiro.

O suco de tomate e o limão minimizam a sensação de sede. E a vodka, bem a vodka, tenta devolver um resto de amor-próprio que a imagem no espelho destrói. Proíbo os amigos e a mulher de me contar o vexame que eu dei e fico em silêncio lendo um livro de detetive ou espionagem, se possível com um herói beberrão.

Não resolve nada, mas dá a ligeira impressão que alguma coisa foi feita em benefício do amor-próprio.

Uma vez um cliente me obrigou a viajar para São Paulo em plena quarta-feira de cinzas.

Foi daí que eu entendi o verdadeiro significado da data: o gosto de ponta de cigarro na boca.

O Santos Dumont apinhado (quem foi o gênio que fez aquele rocambole de vidro em pleno sol do Rio de Janeiro?), a multidão enlouquecida e a dor de cabeça me fizeram pensar

seriamente em parar de beber.

No avião li por coincidência uma crônica do Mário Prata exatamente sobre ressaca. E descobri que ressaca é um dos assuntos mais presentes na Internet.

O Google lista 25.600 sites sobre a matéria.

Como Mario Prata reproduz Luiz Fernando Veríssimo falando de ressaca, faço o mesmo, reproduzindo a reprodução.

Abrem-se aspas. "Hoje existem pílulas milagrosas, mas sou do tempo das grandes ressacas. As bebedeiras de antigamente eram mais dignas, porque você bebia sabendo que no dia seguinte estaria no inferno. Além de saúde, era preciso coragem. As novas gerações não conhecem ressaca, o que talvez explique a falência dos velhos valores. A ressaca era a prova de que a retribuição divina e nenhum prazer ficarão sem castigo. Cada porre era um desafio ao céu e às suas feras.

E elas vinham: náusea, azia, dor de cabeça, dúvidas existenciais, golfadas.

Hoje as bebedeiras não tem a mesma grandeza”.

Pois bem, leitor, fechemos as aspas. Digo eu agora: a ressaca é o marketing do corpo.

Sem ela não teríamos o aviso que a bebida é, antes de mais nada, um veneno. Sem ressaca transformaríamos nosso fígado num patê, nosso estômago numa chaga e nosso cérebro numa compota sem um único lembrete. É bem verdade que, mesmo assim, continuamos a beber. Mas pelo menos nosso corpo pode nos dizer: “eu bem que avisei”.

Outro dia minha mulher perguntou porque eu estava bebendo.

Botei a culpa no Bolsonaro e sua troupe. Ela tinha certeza de que iria ouvir a resposta de sempre.

A idade, a derrota do Santos, a finitude da vida, a falta de amor entre os homens. As desculpas ou as razões de sempre.

Mas expliquei que estava bebendo por causa dos tuíters dos filhos do presidente, por causa do ministro da educação, da Damares, do Olavo de Carvalho.

Eu estava bebendo por descobrir que o governo acha um horror o ensino de coisas inúteis como filosofia.

Eu estava bebendo para esquecer o enorme bando de rancorosos que tenho descoberto nas redes sociais, apoiando o ódio.

Eu estava bebendo para não pensar na minha cidade submersa e nessa chuva que não passa.

Minha mulher ficou me olhando. Cheguei a ler em seu cérebro a idéia de que bebum inventa qualquer desculpa.

Mas algo em seus olhos me deu a certeza que ela achou que - desta vez - eu tinha razão.

Tags: Lula Vieira, Ressaca