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Opinião

A Fé e os retalhos - Um Cosme e Damião ecumênico.

Por Ângela Rocha. - Jornalista e escritora.

Fui criança naquela época boa de ser criança. Minha infância foi permeada de momentos muito especiais. Guardo vivos na memória os encontros de costura que aconteciam na nossa casa durante dois a três meses antes do mês de setembro. Encontros cheios de simbolismos e histórias.

Eram sempre cinco ou seis mulheres. Minha mãe, sua irmã, uma tia por parte de pai, uma amiga e duas vizinhas. Cada uma tinha um dom especial e uma enorme destreza com as mãos – para costura, bordado, tricô ou crochê. Elas se juntavam e faziam o que chamavam de caridade, mas era muito mais do que isto. O que elas faziam era pura arte.

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Eu acompanhava de perto a chegada das enormes caixas repletas de retalhos de tecidos, doados por uma fábrica do bairro. A primeira etapa era separar as diferentes texturas; depois as estampas e, por fim, as cores. A mágica acontecia na medida que os retalhos iam se juntando. Hoje, imagino qualquer uma daquelas peças sendo vendidas em uma boa loja de grife.

Eram roupas de crianças, saias com babados, bermudas, camisas de botão, blusas franzidas, calças; tudo com uma riqueza de detalhes impressionante. Um vestido rosa ganhava uma barra de bolinhas pretas e ficava lindo e único.

Depois de prontas, todas as peças eram separadas por tamanho e guardadas para serem distribuídas em uma grande festa de Cosme e Damião, no dia 27 de setembro, em um terreiro de Candomblé.

Esse talvez fosse o detalhe mais rico desses encontros - A religiosidade. Cada uma delas tinha a sua religião. Minha mãe era Kardecista, minhas tias, católicas; a amiga evangélica; e as duas vizinhas nunca soube se tinham alguma religião.

Não me lembro de qualquer discussão ou desentendimento entre elas. Ao contrário, ouvia risadas e, às vezes, música boa tocando baixinho no rádio. Sempre alguém levava um bolo ou bolinhos de chuva; e quando eu sentia, do meu quarto, o cheiro do café coado na hora, ia correndo para a cozinha ajudar. Era o sinal para o descanso. A hora do lanche. (Sempre tinha coisa gostosa...)

Havia também as doações em dinheiro. Estes valores eram utilizados para a compra de chinelos, material escolar, brinquedos e cestas básicas. Depois de muitos encontros, muita costura e todas as roupas separadas por sexo e tamanho, o trabalho chegava ao fim. A missão daquelas mulheres era dada por encerrada. A vida voltava a rotina normal.

Minha mãe era a responsável pela entrega e distribuição de todo o trabalho feito. Minha família tinha um sítio próximo à casa onde acontecia a festa. Eu gostava de participar de tudo. Ficava ansiosa e agitada com a chegada da data. Uma enorme fila se formava, na véspera, para distribuição de senha. Outra fila, ainda maior, acontecia no dia da entrega.

Eu via dezenas, centenas de crianças chegando. A maioria descalça: este era o detalhe que mais me chamava a atenção. Se eram meninas da minha idade, ou não, era difícil saber. (eu era tão grande, e aquelas crianças tão franzinas...) Era uma outra realidade que me moldava sem eu nem perceber.

Minha mãe me fazia observar tudo, ao me integrar naquela tarefa de distribuir doces e brinquedos: fazia-me enxergar o quanto privilegiada eu era. Ensinava-me a ver o próximo com respeito e generosidade. Cada criança ou família que entrava ali recebia mais do que roupas, chinelos ou cestas básicas- recebia carinho, afeto e respeito.

Um momento fora da rotina daqueles muitos encontros de costura me marcou em especial. Foi quando uma das vizinhas daquele grupo ficou muito doente: uma doença rara, estranha. Os médicos que não descobriam o que era, acabaram por desenganá-la. Só um milagre, foi o que disseram à família.

Assisti na minha casa, no quarto de costuras da minha mãe, a um culto ecumênico. Não tinha a menor ideia do que era aquilo; simplesmente estava lá, e presenciei cinco mulheres de diferentes credos, uma de cada vez, fazer uma espécie de oração em intenção da amiga doente.

Cada uma que terminava sua reza, respeitosamente, passava a palavra à seguinte. E assim, sucessivamente, ouvi falar em Deus, em Jesus, em Nossa Senhora, Bezerra de Menezes... Fui testemunha de um momento cada vez mais raro nos dias de hoje.

E o milagre veio!

Através da interseção da fé com a ciência, em forma de descoberta da doença e, em seguida, do tratamento adequado. A vizinha voltou, quase um mês depois, aos trabalhos. A vida seguiu e continuei a vê-la ainda durante anos.

Aqueles muitos retalhos de diferentes texturas, cores e estampas lembram um pouco a diversidade da vida. A união daquelas mulheres de credos diversos era de um respeito silencioso...Elas conheciam suas diferenças religiosas, não mudavam suas convicções – mas, acima de tudo, se respeitavam. O trabalho delas era juntar as diferenças...

A Fé é a costura dos retalhos.

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Tags: fe, #Religião