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Opinião

Carnaval surdo, cego, mudo e contagioso

“Se a única coisa de que o homem terá certeza é a morte/A única certeza do brasileiro será o carnaval do próximo ano.” (Graciliano Ramos – 1944).

O grande escritor que destilou a realidade profunda do Brasil jamais poderia supor que algum dia não houvesse carnaval. Nem ele, nem ninguém. Até por que toda gente agora se dá conta de que a Gripe Espanhola, que mergulhou o mundo em sua primeira e mais trágica pandemia desde a Idade Média doentiça, foi mais curta do que a Peste Viral que hoje infelicita o planeta. A Espanhola havia chegado ao Brasil em outubro de 1918, paralelamente ao fim da I Guerra Mundial. Matou cerca de quinze mil cariocas na capital do país, cuja única atenção era contabilizar as mortes, com corpos espalhados pelas calçadas, depois recolhidos por caminhões, e enterrados em covas únicas. Mas na mesma velocidade que chegou, ela acabou.

Em fevereiro de 1919, a cidade começou a acordar para a normalidade e à volta do carnaval. Que agitou os cariocas como um choque elétrico a ressuscita-los, pela esperança da felicidade, de que as ruas do rio eram arautos imbatíveis. Tudo o que se queria era celebrar à vida, depois da tragédia. Não por acaso o escritor Ruy Castro definiu o carnaval de 1919, organizado em frêmitos de urgência e de impaciência, como o Carnaval da Revanche. Foi em 1919 que a criatividade popular exultou, parindo duas Instituições a consolidar nosso espírito irreverente: os blocos do Cordão do Bola Preta e do Eu Sozinho, este formado apenas pelo jornalista Júlio Dantas, que perambulava pelas ruas totalmente só. O tema dos blocos (ainda não existiam as Escolas de Samba) foi a pandemia. Mas em parte, transfigurando-a em alegria e ironia. A que não faltaram carros alegóricos como O Chá da Meia Noite, beberagem servida aos doentes terminais para lhes aliviar sofrimento. É claro que a sátira se utilizou da fantasia tradicional nos blocos, as caveiras.

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As pestes de 1918 e 2020 ostentaram diferenças graves, que fizeram dessa última muito mais aflitiva do que a primeira. Por que? Porque, apesar dos avanços abissais da ciência, os cuidados para estancar a pandemia atual foram débeis e muitíssimos mal administrados, dos prefeitos ao presidente da república. Que ignoraram a pandemia e imprimiram inesperada opacidade à medidas essenciais, como cuidados higiênicos, máscaras, distanciamento social, lockdowns. Ou seja, a pandemia galopou a trotes largos, virou pandemônio. E as mortes alcançaram o segundo recorde mundial, depois dos Estados Unidos do também negacionista Trump.

O pior ocorreria com a lerdeza e má vontade do Brasil e seu pacato Ministro da Saúde para adquirir vacinas, seringas, e demais equipamentos.

Consequência grave, gravíssima, desse pandemônio a que o Brasil foi desterrado: faltam vacinas para 220 milhões de almas, a economia está devastada, a peste pode adentrar todo 2021 e, o pior, prolongar-se até 2022. O que pulverizará Natal, Réveillon e até o Carnaval 2022.

Enquanto isso outro efeito trágico começa a se desenhar, o desmonte da “Fábrica de Carnaval”, a Cidade do Samba dos Barracões das Escolas, magia transfiguradora que a cada ano deixa o planeta encantado ante a visceralidade criadora do povo carioca, agora condenado a futuro trágico. Trágico porque o empobrecimento dos artesãos e a fome dos que labutam nos Barracões chegam às portas dos operários da alegria, com salários achatados, quando não inexistentes.

Um grupo de estudiosos da cultura popular está criando um fundo emergencial para prover ao menos a manutenção de cada barracão, que emprega de 300 a 400 pessoas. O que dá uma média de 3 mil famílias hoje sem renda. Nós defendemos para este Fundo Ismael Silva (fundador das Escolas nos anos 20) investimentos do Poder Público agregados a patrocínios tradicionais no sambódromo. Desse modo parece-me, e também a Câmara dos Vereadores que estudou o assunto por meses, uma solução piedosa. Inspirada no Velho Candonga, mítico samaritano do samba que dava água a todos os percussionistas sedentos no recuo da bateria.

Para incentivar essa ideia de pura comiseração seguem abaixo retratos poéticos do não carnaval:

1- “Este não ano vai ser/Igual aquele que passou/Eu não brinquei/Você também não brincou...” (Até quarta-feira, Roberto Martins)

2- “Foi bom te ver outra vez/Tá fazendo um ano/Foi no carnaval que passou...” (Máscara Negra, Zé Ketti)

3- “Quem me vê calado, distante, garante que não sei sambar/ Estou me aguardando/Para quando o carnaval chegar/Eu tô só vendo, escutando/ E não posso falar/ To me guardando pra quando o carnaval chegar...” (Chico Buarque)

Ricardo Cravo Albin

P.S: Fique em casa, e procure sorver o Carnaval sem perigo lendo: o País do Carnaval (Jorge Amado), Orfeu da Conceição (Vinícius de Moraes), Carnaval, Malandros e Heróis (Roberto da Matta), Carnaval (Manuel Bandeira), Morte da Porta Estandarte (Aníbal Machado).