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Opinião

STF funciona cada vez mais como um ‘Supremo Talibã Federal’

Por J.R. Guzzo:

Casos como os das prisões de Daniel Silveira e de Roberto Jefferson e do bloqueio de verbas a canais de comunicação de direita mostram que o desrespeito a leis transforma o Brasil numa republiqueta subdesenvolvida de Terceiro Mundo.

O deputado Daniel Silveira, preso pelo Supremo Tribunal Federal (STF) desde o último mês de junho, pediu à Corte – que é ao mesmo tempo, policial, carcereiro e juiz em todo o processo de sua prisão – autorização para utilizar o seu telefone celular. Sua intenção era voltar a participar dos trabalhos na Câmara dos Deputados – se o seu mandato não foi cassado até agora, e ninguém assumiu o seu lugar, porque não poderia trabalhar à distância, em regime de “prisão-office?” Como o presidente da Câmara não deixa — num caso possivelmente único na história parlamentar do mundo livre, esse presidente e a maioria dos demais deputados são a favor da prisão – Silveira entrou com um mandado de segurança no STF, reivindicando o exercício do seu direito. No STF? Pura perda de tempo, é claro. A ministra Cármen Lúcia, a quem coube julgar o pedido, naturalmente disse “não”; quem é ela para desagradar o colega Alexandre Moraes e outros peixes gordos do STF, que fazem questão de exterminar o deputado e sua carreira? Mas Cármen, além de obedecer, resolveu pensar — e o resultado foi mais um desses momentos de superação que só os onze ministros conseguem apresentar hoje em dia ao público pagante. Ela disse em seu despacho, acredite se quiser, que não podia ir contra a decisão do presidente da Câmara para não violar a “independência entre os poderes”.

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Ficamos assim, então. O STF pode perfeitamente enfiar na cadeia, por quanto tempo quiser, um deputado federal em pleno exercício do seu mandato, algo que faz em desrespeito absoluto às imunidades parlamentares e à Constituição brasileira. Mas não pode contrariar o deputado Arthur Lira quando ele resolve que Silveira está proibido de usar o telefone celular e de exercer o seu mandato em esquema de tornozeleira-remota. Quando prende um deputado, o STF não ofende em nada a “independência entre os poderes”, segundo o seu entendimento da vida e do mundo. Depois da prisão, vira um defensor extremado da ideia de “separação” do Legislativo e Judiciário. Que nexo faz um negócio desses? Não faz nexo nenhum, como continua incompreensível a prisão, dias atrás, do presidente do PTB, despachado para o presídio de Bangu por ordem do mesmo ministro do Supremo – hoje, o marechal-de-campo de uma cruzada heroica, segundo a mídia, as elites e as empreiteiras de obras públicas, contra aquilo que ele considera “atos antidemocráticos”, “fake news” nas redes sociais e delitos de bolsonarismo em geral. Mas aí é que está a chave do sucesso crescente do STF: ninguém, a começar pela classe política, está interessado numa corte suprema que faça nexo. Tudo o que importa é perguntar o seguinte: “Como a gente faz para obedecer?”

A partir de agora, o dinheiro tem de ir para uma conta do TSE

O ex-deputado Roberto Jefferson foi preso em flagrante, mas até agora o ministro Moraes e o grupo de policiais que opera sob o seu comando direto não conseguiram descrever que crime ele estava praticando na hora em que o camburão chegou – ou nas 24 horas anteriores, ou em qualquer outro momento. É certo que Jefferson, como Silveira, fala as maiores barbaridades do STF e da conduta dos seus ministros; também organiza manifestações de rua contra todos eles, com caminhoneiros, tratores e um cantor de música caipira. Mas qual é a lei que proíbe essas coisas? O ex-deputado poderia ser processado por injúria, difamação e até mesmo calúnia pelos ministros, como está previsto no Código Penal. Só que não foi; esses delitos, aliás, não permitem a prisão de ninguém. Foi preso e pode ficar em Bangu até o fim da vida, ou enquanto o STF quiser, por “atentado contra a democracia”. Que atentado, exatamente? Formação de grupos clandestinos para tomar o governo? Aquisição secreta de armas? Treinamento de guerrilha? Distribuição de senhas, codinomes e “pontos”? Planos detalhados para fazer a ocupação do governo? Captura da central de eletricidade? Ninguém diz nada.

O mesmo mistério envolve a última e talvez mais extravagante decisão da “Resistência a Favor da Democracia” instalada nas cortes superiores de justiça deste país. Um funcionário do Tribunal Superior Eleitoral, no cargo de “corregedor”, mandou que as grandes plataformas de comunicação social – Twitter, Youtube, Facebook, etc. – parem imediatamente de pagar as somas que devem aos canais com orientação política de direita, pela transmissão dos seus conteúdos. A partir de agora, o dinheiro tem de ir para uma conta do TSE. É isso, e não se discute mais o assunto. Nem na Justiça? Nem na Justiça. Segundo os altos tribunais federais, este é um caso que não pode ser apreciado pelo Judiciário brasileiro; tudo deve ser resolvido lá em cima. O TSE não tem absolutamente nada a ver com a publicação de notícias, de comentários e de opiniões nas redes sociais; trata, exclusivamente, de questões eleitorais, que vão do registro de candidatos à apuração dos resultados da eleição. Mas o que é a lei, a mera lei, diante da missão de salvar a democracia no Brasil, coisa muitíssimo mais importante, segundo o STF e seus subúrbios? O resultado é que blogs e sites com posições de direita, ou bolsonaristas, ou anti-comunistas, foram punidos sem que a punição tenha sido determinada por nenhum juiz, em nenhum processo judicial, com direito de defesa e as outras garantias mínimas estabelecidas pela lei brasileira.

A decisão não saiu do nada, é claro. O corregedor do TSE decidiu, para justificar o castigo, que os canais aos quais aplicou o bloqueio financeiro estavam publicando “fake news” — assim mesmo em inglês, como se não fosse obrigatório o uso do idioma nacional em todos os documentos oficiais. Muito bem: e daí? E se os comunicadores punidos realmente publicaram notícias falsas? Que diabo a repartição pública que cuida de eleições tem a ver com isso? Mais: não existe, em nenhuma lei, o crime de “publicar notícia falsa”, ou fazer “desinformação”. Como alguém pode ser castigado por cometer um crime que não existe? Da mesma forma que nos casos anteriores, divulgar mentiras num veículo de comunicação pode dar processo criminal por injúria, difamação ou calúnia – além de penas cíveis como pagamento de indenizações em dinheiro e retratação dos autores ou dos órgãos de imprensa que fizeram a publicação. Mas é isso, e só isso. Não cabe ao TSE ou a nenhum braço do Estado, fora as varas de justiça, decretar punições contra quem usa o direito de livre expressão, garantido pelo artigo 5 da Constituição. Pela decisão tomada, além disso tudo, o TSE acaba de dar a si próprio o direito de definir o que é verdade e o que é mentira no território brasileiro. Pode? O corregedor, com a colaboração da polícia – sempre ela, a polícia, ocupando o primeiro plano em todas essas histórias – decidiu, autorizado não se sabe por quem, que as notícias publicadas pelo site “A” ou “B” são falsas; as dos sites “C” e “D” são verdadeiras. Como são falsas, na opinião do burocrata do TSE, têm de ser punidas – mesmo que a lei brasileira não estabeleça nenhuma punição para isso. É algo inédito no direito universal.