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Internacional

Médico francês considera que estratégia de testagem serve para "queimar dinheiro"

Está na linha da frente de um dos mais antigos estabelecimentos de saúde da capital francesa. Nesta entrevista, Gérard Kierzek, médico urgentista no hospital Hôtel-Dieu, em Paris, fala sobre o que significa “testar positivo” em 2022 e das mudanças introduzidas pela variante ómicron no combate à pandemia. Acredita que é tempo de deixar cair as restrições e defende que o passe vacinal é um instrumento político pensado para as eleições presidenciais francesas agendadas para abril.

Lurdes Duro Pereira: Os dados disponibilizados pelas autoridades de saúde francesas apontam para uma média diária de cerca de 150 mil novos casos positivos de Covid-19. O que significa testar positivo, mais de dois anos após o início da pandemia?

Gérard Kierzek: “Estamos a falar de uma nova pandemia, de uma nova variante e de um novo vírus, pelo que, hoje em dia, não quer dizer nada. Sabemos, por isso, que não é um bom indicador. O único indicador que seria pertinente ter em conta é o da tensão hospitalar, ou seja, o número de pessoas que passam pelas urgências, o número de hospitalizações e o número de pacientes em cuidados intensivos que não devemos confundir com as reanimações. Mas os casos diários de contaminação não querem dizer grande coisa porque estamos a falar de pessoas que não estão doentes ou, pelo menos, não muito doentes. Assim em 2022, e tendo em conta que a variante ómicron é muito menos perigosa do que a anterior e que todos os invernos há doenças respiratórias, posso dizer que já não faz sentido testar desta forma. Toda a doutrina válida em França de testar, rastrear e de isolar que, e é importante sublinhar, nunca funcionou no país, funciona agora ainda pior. Não faz sentido testar em massa até porque sejam os resultados positivos ou negativos, os procedimentos são idênticos.“

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LDP: Os resultados desta testagem em massa podem não ter um impacto direto na saúde pública, mas estão à vista em termos financeiros…

GK: “11 milhões de testes de despistagem por semana que custam por mês 1,5 mil milhões de euros [dados relativos a janeiro]. É uma aberração em detrimento da comunidade já que está ser feito à custa do investimento. Não se trata, por isso, de um investimento na saúde, mas antes de uma despesa a fundo perdido. Pagamos por testes que, muitas vezes nem sequer são fiáveis e através dos quais nem sempre é possível chegar a uma conclusão. Além disso, os procedimentos a seguir são exatamente os mesmos. Pelo que não serve estritamente para nada a não ser para queimar dinheiro.”

LDP: Há muito que os profissionais de saúde franceses criticam, por exemplo, a política de redução de camas hospitalares que se vem acentuando desde 2013 e os cortes no setor. De que forma é que a crise sanitária agravou os problemas existentes?

GK: “É evidente que estamos a falar de dinheiro que não vai ser investido na saúde nos próximos meses ou nos próximos anos. Esta crise deixou para segundo plano duas questões importantes. Quando falamos em Covid-19, estamos a falar de uma doença que afeta os mais frágeis. Por isso, a prioridade deve ser a de reforçar esta população e agir em matéria de prevenção, desde logo, em relação aos mais idosos e aos obesos. É preciso monitorar os casos de obesidade e estar preparado para internar, mais cedo, as pessoas se for necessário. Mas para isso precisamos de ter camas disponíveis nos hospitais e que faltam em França. Pelo que faria mais sentido utilizar aí esse dinheiro, os tais 1,5 mil milhões de euros. O segundo ponto de que ninguém fala é o da crise estrutural nos hospitais. Se tivéssemos hospitais de proximidade e pudéssemos internar as pessoas precocemente, se tivéssemos a possibilidade de realizar testes aos pulmões para verificar se existe uma infeção, ou um início de pneumonia, e pudéssemos agir atempadamente, poderíamos salvá-las. O problema é que já não temos hospitais de proximidade. Diria que a Covid-19 está a esconder os dois verdadeiros problemas no setor da saúde em França.

LDP: Trabalha no serviço de urgência do mais antigo hospital da capital francesa e um dos mais importantes. Deparou-se ao longo deste período mais conturbado da pandemia com um fluxo massivo de doentes Covid?

GK: “De forma alguma. Em março, abril, maio e junho de 2020, a atividade do serviço de urgência caiu 40 por cento. Nunca existiu um fluxo massivo. Houve sim, uma forte tensão nos serviços de reanimação que obrigou à reabertura de mais serviços [de reanimação] em Paris porque faltavam camas, mas não nos serviços de urgência. Esta doença afetou, sobretudo, os serviços de reanimação porque muitas pessoas foram mandadas para casa e aconselhadas a tomar Doliprane [indicado para casos de febre ou dor moderada]. As pessoas aguardavam em casa e só voltavam ao hospital quando o caso já era grave. Chegavam ao hospital demasiado tarde e, por isso, iam para reanimação. Foi um erro em termos de estratégia médica, mas agora isso já não acontece.”

LDP: Considera que o passe sanitário substituído, em janeiro, pelo passe vacinal pode, do ponto de vista médico, ajudar no combate à propagação do vírus?

GK: “A vacina não impede a transmissão do vírus. Foi concebida para proteger a população mais frágil, ou seja, as pessoas com mais de 65 anos, os pacientes obesos e com um défice de imunidade. Não interessa vacinar todos os que não entram nesta categoria já que não impede a transmissão. Por isso, quando olhamos para a pandemia ao fim de dois anos podemos dizer que houve um erro na estratégia. Em vez de protegermos os mais frágeis decidimos, e esta é uma estratégia política, avançar com a vacinação massiva da população. É, por isso, que estamos a recuar, mas vai ser preciso fazer ajustes. De qualquer forma, o passe vacinal não tem qualquer interesse e vemos isso claramente. Não impediu a ómicron e, além disso, a vacina é menos eficaz com esta variante.”

LDP: O que aprendeu a França com a África do Sul onde foi detetada a ómicron?

GK: “Nada. Alertei, desde o início, para o que estava a acontecer na África do Sul; para a necessidade de se levantar as restrições e de se acabar com o isolamento das pessoas por não se tratar da mesma pandemia, nem do mesmo vírus. A França não aprendeu nada porque decidiu avançar com o passe vacinal. O que é surpreendente nesta pandemia é que todos os países apresentaram estratégias diferentes, mas se olharmos para o resultado, ou seja, para a taxa de mortalidade que no final é o que conta, é a mesma.”

LDP: A França deparou-se em 2015 com uma outra epidemia provocada pela gripe que, também, provocou uma elevada taxa de mortalidade, mas de que pouco se ouviu falar. Compreende a diferenciação na abordagem pública a essa crise quando comparada com a atual?

GK: “Houve uma histeria mundial. Quando em 2020 assistimos às imagens que chegavam da China com pessoas a morrer houve muito medo. Um ataque de pânico que foi alimentado com o que se viu, mais tarde, em Itália, com pessoas de idade avançada a chegar às salas de reanimação. Antecipamos, por isso, o nosso estado de pânico em relação a um vírus com uma taxa de mortalidade que pensávamos ser extremamente elevada. E isso gerou medo. Daí a histeria com uma contaminação mundial. Mas rapidamente, ao fim de dois ou três meses, apercebemo-nos que não era esse o caso, ou seja, de que estávamos perante um vírus com uma taxa de mortalidade pouco significativa. Recordo que a taxa de mortalidade em França foi de 0,1 por cento em 2020 e que as pessoas tinham em média 85 anos.”

LDP: Se, como disse, os profissionais de saúde se aperceberam que se tratava de um vírus menos perigoso do que tinham, inicialmente, previsto como se explicam as medidas de restrição?

GK: “Em março e abril de 2020, não havia escolha porque o Governo não se sabia o que se passava. Em janeiro de 2021, o Presidente da República compreendeu que era preciso acabar com o confinamento. E foi isso que fez contrariando a opinião de todos, mesmo do Conselho Científico, que na minha opinião é composto por pessoas que desconhecem a situação no terreno e de idade avançada, que temem pela própria saúde. Vemos, por isso, que os conselhos médicos dados, tal como a histeria nas televisões foram más conselheiras. O que aconteceu nos últimos meses deve, no entanto, ser visto do ponto de vista político. Estamos à beira de eleições presidenciais e o eleitorado de Emmanuel Macron é um eleitorado envelhecido que tem medo. Ele quer proteger os seus eleitores a todo o custo e o único meio que tem à sua disposição é o da vacinação independentemente de funcionar ou não.”

PHOTO: Mika Baumeister