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Opinião

Fernando Pessoa, nosso cúmplice

Angela Rocha *

* Jornalista e escritora.

Dizem que Deus perdoa travessuras de crianças. Deus pode até ter perdoado, mas a minha mãe....me deixou de castigo por semanas...

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Minhas desventuras começaram no dia que Nair chegou. Era uma mulher baixinha, atarracada, que veio do interior de Minas Gerais para morar e trabalhar na nossa casa. Até aí, tudo normal para os padrões da época. Se não fosse por um detalhe:

Nair era a pessoa mais mal-humorada que conheci em toda a minha vida. Reclamava de dia, de sol e de dia chuvoso. Até elogio, ela retribuía com um muxoxo ou cara feia. Nem eu escapava. Quando ficava quieta era porque estava aprontando. Se, ao contrário, eu falasse, ela dizia que estava incomodando.

Um dia convoquei minha melhor amiga para ajudar. Tínhamos que descobrir porque Nair era tão amarga.

O jeito era xeretar a sua vida. Perguntei-lhe pela cidade e pela família e tudo parecia comum e até um pouco enfadonho. Até que quis saber de namorados...veio daí o nosso susto e a história. Nair, apesar dos quase 40 anos de idade, nunca tinha tido um namorado.

-Nunca? Perguntei assustada.

Identificado o problema, na nossa inocência de pouca idade, a solução parecia simples: Arrumar um namorado para ela. Nós bem que tentamos. Falamos com o padeiro, com o porteiro do prédio ao lado, mas ninguém nos levou a sério.

Minha amiga achou que talvez fosse melhor desistir. Mas foi aí que eu tive a brilhante ideia: Inventar um namorado. Fictício. Por que não?! Alguém que escrevesse para Nair lindas e anônimas cartas de amor.

Fizemos o dever de casa direitinho. Pesquisamos livros de poesia e sonetos, compramos selo, colocamos a carta na caixa do correio. Dias depois, ela chega, entregue pelas mãos insuspeitas do carteiro.

Nair abre a carta com a testa franzida, senta-se à mesa da copa e começa a lenta leitura. As frases eram lidas de forma paulatina com o auxílio das mãos para separar as linhas. A caligrafia era infantil e o texto meloso e tosco; mas terminava em grande estilo com o trecho de um poema.

Na medida em que ia lendo, assistimos espantadas ao rosto de Nair ir se transmutando...e, aos poucos, ia surgindo um sorriso. Era o primeiro sorriso depois de meses na minha casa. Deu um misto de remorso e alegria. A carta era falsa, mas a felicidade verdadeira. Resolvemos continuar com as cartas.

Com o tempo, descobrimos que na casa de sua família a regra era clara: Filho só ficava na escola até aprender a ler e fazer conta. Ninguém precisava de filho letrado, somente braços fortes para a roça e ajuda, em casa, para a mãe.

E assim passaram-se os meses seguintes. A gente gostando cada vez mais de escrever cartas e Nair gostando cada vez mais de ler. Nair foi gostando tanto que começou a pedir revistas e pequenos livros. Arranjamos, também, a pedido dela, um caderno de caligrafia para melhorar sua letra.

Mas, a melhor parte da brincadeira era espalhar sobre a cama todos aqueles livros para a escolha do poema da carta seguinte. Estávamos fazendo algo errado. Mas, tínhamos a cumplicidade de Fernando Pessoa, Vinicius de Moraes e Carlos Drummond de Andrade.

Mas aí veio a culpa. Sempre ela: a eterna desmancha-prazeres da vida.

O que estávamos fazendo era feio, era errado (aos olhos da minha avó, um pecado). Então, entendemos que era hora de terminar com a história.

O caminho escolhido foi o pior possível: marcar um encontro dela com um namorado que não existia. Que, claro, não apareceu. Ele era fruto da imaginação de duas garotas de 13 anos de idade.

Nair chegou em casa chorando e desabafou com a minha mãe, que descobriu logo as culpadas pela confusão. Me fez confessar tudo, pedir desculpas e jurar nunca mais fazer algo parecido.

Mesmo assim, Nair foi embora semanas depois. Voltou para sua cidade. Fiquei com uma dor de remorso no coração e semanas de castigo para digerir o malfeito.

Mas nada como a vida e suas lições. Cerca de um ano depois, recebo das mãos do mesmo carteiro, uma carta. Reconheci logo de cara a letrinha desenhada de Nair. Chamo a minha mãe e lemos juntas, emocionadas, uma carta de agradecimento. Ter descoberto a leitura e os livros foi a melhor coisa que aconteceu na sua vida.

Ela continuava sem um grande amor de verdade, real de carne e osso, mas agora podia ter muitos ou todos, através dos romances que passou a ler loucamente. E dizia orgulhosa que estava estudando à noite para, quem sabe, no futuro, ser professora.

Para terminar, ela se utiliza do mesmo recurso das nossas cartas e reproduz o trecho de um poema que ouso imaginar foi uma brincadeira e um perdão de Nair...

"Todas as cartas de amor são Ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem Ridículas.”

Álvaro de Campos

(um dos quatro heterônimos de Fernando Pessoa).

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