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Opinião

O galã dos remédios

Por Angela Rocha - Escritora e jornalista.

Acho que tive problema com os bonitões, quando jovem. Aqueles garotos atléticos disputados pelas garotas do colégio ou da faculdade. Foram três experiências bizarras que geraram um meio trauma.

A primeira foi com um lindo menino de cabelos loiros esvoaçantes em seu primeiro dia de carteira de motorista, ao volante do carro novo recebido de presente do pai pelo bom desempenho no vestibular e uma possível futura namoradinha.

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Assim que abro a porta do carro sou tomada por um cheiro absurdamente forte.

- Que cheiro forte é esse? Pergunto, enquanto me acomodo no banco depois de um leve abraço.

Ele se desculpa. Talvez tenha exagerado no perfume. O pai ficou em casa reclamando( " acabou com o vidro inteiro...”). Minutos depois da partida do carro, já aparecem os primeiros sintomas. Começo a tossir, depois o nariz entope e quase não consigo respirar. E, por último, uma dor de cabeça desconfortável.

A incrível noite planejada por ele se resume a um passeio de carro até a porta de uma pizzaria e a volta correndo para casa. E o menino ainda era dramático... A mãe era médica. Ele cismou que eu estava tendo um edema de glote e queria me levar para o hospital. Aff!

Para quem acha que estou exagerando, assim que cheguei em casa e abri a porta, minha mãe gritou lá do sofá:

-Cruzes!... Que cheiro forte. Vai direto para a área de serviço e coloca a roupa no cesto para lavar. Vai impregnar a casa toda.

O segundo era moreno e tinha belos olhos verdes. Combinamos um cinema. Uma comédia muito famosa e conhecida na época, com outro bonitão na tela, Terence Hill, ao lado do parceiro Bud Spencer. Logo nos primeiros minutos do filme percebi que o rapaz tinha um problema de delay de riso. Sua gargalhada vinha sempre segundos depois do restante da plateia.

O melhor teria sido deixar quieto. Mas resolvi perguntar:

- Não está gostando do filme?

- Não consigo entender nada. Foi a resposta sussurrada, complementada a conta-gotas... As letras passam muito rápido. Não dá tempo. Você pode ler as legendas para mim?

Alguém já tentou ler legendas de um filme para alguém com mais de 10 anos de idade? Nem queira. É um trauma para a vida toda. Claro que parei a leitura literal e passei a fazer resumos; para ver se acabava mais rápido aquela tortura.

Dias depois, encontro com uma colega no cursinho perguntando se me importaria se ela saísse com o rapaz das legendas.

- Claro que não. Nunca mais nos falamos. Respondi. E sugeri a ela: Leva ele ao cinema para assistir o filme do Woody Allen. Vocês vão adorar! (Que maldade! Pensei depois...)

O terceiro e último teve contornos quase épicos. O bonitão era conhecido e famoso na faculdade. Estudava turismo. Fazia figuração na TV Globo, sempre no mesmo papel -dele mesmo: forte, sarado e bonitão. Quando nos esbarrávamos em algum corredor ou escada, ele perguntava:

- Quando é que você vai sair para jantar comigo?

As amigas suspiravam, mas a minha intuição - já bastante calejada - dizia que era furada; e fui adiando. Até que, em um dia de chuva nos encontramos e resolvemos sair para jantar.

A conversa fluía arrastada. O assunto preferido dele era ele mesmo: Os artistas que já tinha conhecido na TV globo, seus cuidados com a saúde, exercícios físicos e alimentação saudável. Estava prestes a sucumbir de tédio quando notei que, enquanto falava, ele não olhava nos meus olhos.Flertava com alguém atrás de mim. Arrumava o cabelo e sorria para outra pessoa.

A situação me causou incomodo e curiosidade. Quem seria a Vênus de Milo que o seduziu em menos de 15 minutos? Não foi difícil virar a cabeça para trás e descobrir que o que tinha atrás de mim era... um espelho!

O narciso se admirava e namorava consigo mesmo enquanto conversava comigo. Que falta faz um celular numa hora dessas... Você mata algum parente e avisa que precisa ir embora.

Finalmente a comida chegou. Resolvi relaxar e me abstrair da conversa chata. Neste momento, ele tira uma carta da manga.

- Você sabia que eu tenho um hobby?

(Não. Não sabia. E me iludi pensando que poderia comer ouvindo-o falar de uma coleção de figurinhas, moedas ou fotos antigas.)

- O meu hobby é decorar a bula e a composição química de remédios...Isso não é para qualquer um, não. É muito difícil. Quer ver?

Não. Eu não queria. Mas ele seguiu falando sem parar:

- Plasil tem cloridrato de metoclopramida monoidratado e Novalgina, dipirona monoidratada...

Entre um e outro ele ria satisfeito consigo mesmo. E ficava nervoso quando errava ou esquecia algum daqueles nomes esquisitos.

“Galã dos remédios” surgiu de uma conversa entre amigas, mas se espalhou e virou apelido. Ele o tomou como um elogio à sua incrível performance na arte de decorar nomes difíceis- sorria vaidoso sempre que o chamavam assim.